'Fica uma cicatriz na alma', diz sobrevivente do Carandiru 30 anos após o massacre
Ex-detentos relatam como vivem com a memória da tragédia que deixou 111 mortos no maior presídio da América Latina
São Paulo|Julia Girão, Do R7*
Uma cicatriz na alma. É desta forma que o autônomo Luiz Carlos Paulino, de 55 anos, lembra do Massacre do Carandiru. O assassinato de 111 detentos no maior presídio da América Latina completou 30 anos no domingo, dia 2 de outubro. Passadas três décadas de um dos episódios mais sangrentos da história do sistema prisional, sobreviventes da tragédia relatam como vivem com o peso das lembranças e a memória do barulho dos tiros pelos corredores.
Às vésperas das eleições municipais, em outubro de 1992, policiais entraram na Casa de Detenção de São Paulo, popularmente conhecida como Carandiru, e dispararam contra os presos. Maurício Monteiro, que cumpria pena no presídio, relata como enfrenta o trauma até hoje. "O psicológico entra em modo de sobrevivência. Tenho a minha família e meus filhos. Não posso ficar louco”, afirma.
Na época, 7.257 presos viviam no Complexo, sendo 2.706 deles só no Pavilhão 9, onde um desentendimento entre dois detentos se iniciou. A briga se generalizou e a Tropa de Choque entrou no presídio sob a justificativa de conter o conflito.
Preso em 1990, Maurício Monteiro, de 53 anos, estava no Carandiru havia dois anos. Da cela 313, no terceiro andar da casa de detenção, ele assistiu à luz acabar e a uma movimentação incomum: “Toda a cadeia estava trancada e policiais começaram a passar para dentro do pavilhão. Era difícil ter a polícia por ali. Já ficou aquele clima meio tenso. Quando olhei pela janela, dava para ver a Rota entrando”.
Luiz Carlos foi preso em 1986. Quando a polícia entrou no complexo, ele jogava bola com mais sete colegas. Embora o ex-detento consiga falar sobre a tragédia, ele ressalta que a data é uma “cicatriz na alma daqueles que sobreviveram”.
“Não houve conversa, não houve negociação, não houve nada”
Maurício conta que, apesar de o barulho dos tiros ter paralisado seu corpo, ele entrou na cela e se escondeu atrás de um lençol pendurado no banheiro, que servia para dar mais privacidade aos presos.
Um policial puxou o pano e engatilhou a arma contra cabeça dele, mas, de repente, um tenente proibiu os policiais de dispararem. "Foi nessa hora que sentimos que as pessoas estavam morrendo”.
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Momentos depois, apenas de cueca e com as mãos na cabeça, os presos precisaram descer. Pelo caminho, dezenas de corpos empilhados, e policiais militares enfileirados para agredir os presos. A prática é conhecida como "corredor polonês".
“Tinham um cara na minha frente que um cachorro veio e arrancou os órgãos sexuais, ele caiu no chão gritando e os policiais chegaram com uma baioneta de fusível", diz Maurício Monteiro.
"Eles [os policiais] foram para executar, com o objetivo de abater o ser humano, sem ao menos dar defesa para aqueles que estavam lá", afirma Luiz Carlos.
“Condenado não está, culpado não é”
Entre os 111 mortos nos registros oficiais, 84 sequer tinham sido julgados e condenados pelos crimes que haviam sido acusados. “Conheci cinco presos que estavam com o alvará de soltura para ir embora naquele dia e foram mortos. Condenado não está, culpado não é”, relembra Maurício.
Contudo, após a série de humilhações, mortes e torturas que presenciaram naquele 2 de outubro, tanto Maurício quanto Luiz Carlos afirmam que 111 é um número muito baixo para a quantidade de corpos e tiros que viram e escutaram.
“Não foram só 111. Somente a palavra inefável, que significa tudo aquilo que não se pode descrever, define a dor daqueles que sobreviveram ou perderam alguém”, diz Luiz Carlos. “Era um mundo onde o filho chorava e a mãe não via. Terrível. Você tinha que ser olho por olho dente por dente, ouvir mais e falar pouco”, lembra Luiz Carlos.
História, memória e vida após o cárcere
A história do Massacre do Carandiru demonstra, de acordo com Maurício, um apagamento da história e da memória do presídio e das atrocidades que ocorreram naquele espaço. “Quem olha para o Parque da Juventude não vê nada referente àqueles acontecimentos. Pelo contrário. Quando a gente apaga essa história é porque quer apagar propositalmente alguma coisa ruim”.
Há mais de dez anos, Maurício deixou a prisão, formou-se em gestão ambiental, é empresário e instrutor de boxe, além de fazer trabalho voluntário eintegrar a primeira Frente de Sobreviventes do Cárcere, que tem o objetivo de mostrar para egressos que existem meios para recomeçar.
Em liberdade desde 2011, Luiz Carlos é autônomo e faz parte do mesmo grupo de sobreviventes. Para ele, mesmo passados 30 anos, o problema é que não se assumiu o erro de violar direitos dos cidadãos. “O Estado tem que pagar, ressarcir, rever atitudes erradas. Não só a violência do massacre, mas todas as praticadas em sistemas penitenciários."
No total, 74 policiais foram condenados por 77 assassinatos, com penas que variam variam de 48 anos a 624 anos de prisão. Contudo, os réus recorreram e nunca foram presos. Eles pedem a redução das penas determinadas.
*Estagiária do R7, sob supervisão de Fabíola Perez e Márcio Pinho