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Indigentes de São Paulo são enterrados nus e em caixões abertos

Ministério Público aponta também que covas têm apenas 70 cm; OMS recomenda 1,5 m

São Paulo|Diego Junqueira e Sylvia Albuquerque, do R7

Foto divulgada na internet mostra caixões abertos antes de enterro
Foto divulgada na internet mostra caixões abertos antes de enterro

É na última quadra, no fim da colina do cemitério Dom Bosco, em São Paulo, que estão enterrados os “indigentes” da maior cidade brasileira. Seus corpos chegam nus e em caixões de compensado que não são lacrados. Algumas dessas caixas de madeira nem sequer possuem tampa, atraindo curiosos aos enterros, que acontecem quase diariamente. Ali os cadáveres ganham uma identificação no livro de registros, uma estaca com um número e uma cova rasa.

Chamá-los de “indigentes” não passa de simplificação, já que boa parte deles possui documento de identidade, mas teve o azar de morrer longe das famílias, sem o conhecimento delas.

Entre junho de 2014 e junho de 2015, São Paulo enterrou 791 pessoas em valas para “indigentes”, de acordo com uma lista criada há um ano pelo serviço funerário da prefeitura. Desse total, 422 são os chamados “desconhecidos”, que são as pessoas encontradas mortas sem documentos. Os 369 restantes possuem nome, RG e endereço, mas não tiveram as famílias contatadas pelo poder público (veja no infográfico abaixo o perfil dessas pessoas).

A responsabilidade para isso seria do SVOC (Serviço de Verificação de Óbitos da Capital), órgão vinculado à USP, além dos sete IMLs (Instituto Médico Legal) da cidade, ligados à Secretaria de Estado da Segurança Pública. São esses dois órgãos que encaminham os cadáveres para a prefeitura realizar os enterros. Nenhum deles, no entanto, presta o serviço de encontrar familiares das pessoas identificadas.


Existem três situações que levam uma pessoa a ser enterrada como “indigente”. A primeira é justamente a dos desconhecidos. Como são encontrados mortos sem documentos, seus corpos são enviados ao IML para necropsia e, em seguida, encaminhados para enterro em terreno público.

No segundo caso, estão as pessoas identificadas que sofreram morte violenta, mas sem o conhecimento da família. Os corpos também são encaminhados para o IML para a necropsia. É aberto um boletim de ocorrência para investigar a morte, mas isso não é garantia de que as famílias serão contatadas.


No terceiro caso, estão os “não reclamados”: pessoas identificadas que sofreram morte natural. Seus corpos são enviados para o SVOC, que faz a necropsia para o controle de doenças do município. O órgão espera por dez dias até que algum familiar reclame pelo corpo. Se isso não acontecer, o cadáver é enviado ao serviço funerário municipal. Pelo menos 3.000 pessoas não reclamadas foram enterradas como indigentes na cidade desde 2000, segundo investigação do Ministério Público de São Paulo.

Há três cemitérios em São Paulo que realizam enterro de desconhecidos e não reclamados: o São Luiz, na zona sul, o Vila Formosa, na zona leste, além do Dom Bosco, em Perus, no extremo norte da cidade.


O cemitério de Perus, como é conhecido, é o principal deles. Dos 791 casos analisados pela reportagem, 639 foram enterrados lá, uma média de 49 por mês.

Perus enterra pessoas desconhecidas desde 1971, quando foi inaugurado, durante a gestão do prefeito Paulo Maluf. O local ficou marcado posteriormente pelo sepultamento de mais de mil pessoas em uma vala clandestina, incluindo presos políticos assassinados pela ditadura militar. Essa vala foi encontrada e aberta em 1990, durante a gestão Luiza Erundina, e, em dezembro de 2014, uma equipe forense iniciou a análise das ossadas para identificar os restos mortais de desaparecidos políticos.

Amontoados

Atualmente, não há dia nem horário exatos para o enterro de indigentes, embora aconteçam com maior frequência às terças e sextas-feiras, entre 11h e 15h.

Os corpos chegam em um furgão azul chamado “rabecão”, que é o veículo do IML utilizado para os transporte de cadáveres.

Os caixões ficam amontoados no rabecão. Como as urnas não são lacradas e os corpos não são cobertos, é possível ver as pernas e pés de alguns dos cadáveres saindo das caixas de madeira.

A exposição dos corpos atrai curiosos ao Dom Bosco, o que exige dos coveiros não somente o trabalho de carregar e enterrar os corpos, mas também o de monitorar o “público” para impedir que fotos e vídeos sejam gravados.

No dia em que a reportagem esteve no local, um casal visitou a quadra dos indigentes por volta do meio-dia à espera dos corpos. “Minha irmã disse que dá pra ver tudo, então eu vim ver”, disse a mulher. Com a demora do rabecão, o casal acabou desistindo.

Naquele dia foram enterrados três homens, além de outros dois pequenos caixões contendo membros de corpos. Segundo os coveiros e outros funcionários do cemitério, o número é considerado baixo, já que há dias em que são enterradas até 20 pessoas. Por isso, é preciso que 30 covas estejam abertas diariamente em Perus.

Antes de levar os corpos até a última quadra do cemitério, o rabecão faz uma parada na quadra anterior, a chamada “quadra dos anjinhos”, reservada ao enterro de crianças e bebês. É ali onde são enterrados os dois pequenos caixões.

Em seguida, o rabecão entra na quadra dos indigentes, passando por um terreno acidentado e evitando as covas antigas que, com a ação do tempo, afundam e formam buracos.

O cemitério de Perus não possui túmulos de cimento ou mármore. Nas outras quadras, familiares erguem jardins sobre os jazigos, colocando placas de cimento com nome e datas e, em alguns casos, fotos.

A quadra dos indigentes, no entanto, possui apenas estacas com números, que identificam uma sequência de cinco cadáveres. Quando uma família encontra um parente enterrado ali, ela tem a opção de entrar na Justiça para pedir a exumação do corpo, ou, então, esperar o período de três anos até que o corpo seja exumado pelo próprio cemitério. Em poucos casos, os familiares erguem jardins no local onde está o corpo do parente.

O enterro é rápido. Com auxílio de cordas, quatro homens erguem as urnas e caminham por uma distância de cerca de cinco metros entre o rabecão e as valas. O procedimento foi gravado pela reportagem utilizando uma câmera escondida.

Dos três caixões, um não possui tampa. Os outros dois, apesar de cobertos, não estão fechados.

Dentro da caixa de madeira aberta está um cadáver com um corte que vai do pescoço ao púbis, resultado da necropsia, além de uma etiqueta de identificação. Dá pra ver ainda que o corpo está sujo, com algumas marcas de sangue, principalmente perto do pescoço e da boca.

O caixão é enterrado diretamente na cova, sem cobertura, com a terra despejada em cima do corpo.

Profundidade das covas

Segundo o Ministério Público de São Paulo, falta um padrão para o enterro de indigentes na capital.

A promotora Eliana Vendramini é coordenadora do Plid (Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos) e está há um ano e meio tentando fechar um acordo com SVOC e SSP para evitar que mais pessoas identificadas e reclamadas sejam enterradas como indigentes.

Em meio a esse trabalho, ela também assumiu a tarefa de verificar como são feitos esses enterros. Ela acionou o serviço funerário municipal e agora está elaborando uma proposta aos três órgãos para criar um padrão sobre como devem ser enviados os corpos aos cemitérios e como devem ser as inumações.

Para Eliana, o primeiro erro atualmente é o enterro de pessoas “desconhecidas” e “não reclamadas” no mesmo local.

─ Indigente é quem não tem capacidade econômica pra pagar os custos da inumação. Não reclamado é um corpo que ninguém reclamou, é um corpo que não se sabe a quem pertence. Você tem o nome, tem vários BOs, às vezes tem filiação materna, data de nascimento. Essas pessoas são diversas. Por que estão no mesmo campo?

Ela também questiona a exposição dos corpos e a profundidade das valas.

─ Nós ficamos muito impressionados com o tamanho da cova. É muito rasa. (...) A Cruz Vermelha criou um padrão [para enterros] em caso de catástrofe ou de mortes em [grande] número. Ou seja, nós podemos fazer o mesmo padrão, mas com muito mais tempo, porque não são 400 num dia. Num dia que vi muito eu vi 18.

De acordo com esse padrão da Cruz Vermelha, e também um manual elaborado pela OMS (Organização Mundial de Saúde), recomenda-se, em situações de emergência, que as valas tenham 1,5 m de profundidade e que os corpos estejam em caixões fechados, envoltos em panos ou colocados dentro de sacos. Isso evitaria o contato dos ossos com o solo e preservaria as ossadas, facilitando uma posterior exumação, identificação e transporte dos corpos, caso seja necessário.

Segundo a promotora, as covas em Perus possuem 70 cm de profundidade. Ela afirma ainda que o cemitério não utiliza toda a quadra dos indigentes antes de voltar ao começo e reaproveitar as covas, procedimento padrão chamado de “refunda”. Em vez disso, diz, são enterrados até quatro corpos por vala e em datas próximas.

─ Eles põem quatro corpos por terreno, quando eles podiam esgotar o terreno e voltar, porque assim você preserva melhor a ossada. Não vou dizer que não vai usar uma vez só [a cova], mas por que quatro? Põe o corpo no compensando de madeira, joga a terra e vem outro. Mesmo que seja em outro dia, isso mistura a ossada. Diz para mim como vou encontrá-las separadas? E por que deixam a ossada no terreno depois de três anos e não deixam num ossário? Eles me responderam e agora vou começar a demandar. Acreditamos que pode ser mudado, que não precisa ficar como está.

O Serviço Funerário do Município discorda das afirmações. Em resposta por e-mail enviada pela assessoria de imprensa, diz que não há diferenças entre o sepultamento de desconhecidos e o contratado por familiares.

“As covas têm 1,55 m de profundidade no Vila Formosa, Dom Bosco e no São Luiz, os três cemitérios onde ocorrem sepultamentos de desconhecidos e não reclamados enviados pelo IML; Os corpos são despidos pelos técnicos do IML para efetuarem a necropsia e não são vestidos novamente. Como não tem familiar para vestir, eles são colocados nus nas urnas e enviados para sepultamento; Todos os caixões possuem tampas e, na hora do sepultamento, todas as tampas estão fechadas; Não é necessário cumprir exigências da OMS ou Cruz Vermelha, pois são orientações para situações de calamidade pública e o serviço funerário cumpre as normas técnicas vigentes”, diz a nota.

A prefeitura também nega enterrar até quatro corpos por vala em datas próximas, como diz o Ministério Público. E informa que as sepulturas só têm menos de 1 m no caso da refunda, procedimento “realizado com respaldo técnico”.

Ossário do cemitério Dom Bosco, em Perus
Ossário do cemitério Dom Bosco, em Perus

“Para cada sepultura, um corpo; após exumados (depois de três anos) são retirados, ensacados, identificados e colocados no mesmo local, o termo é “refunda”. Isto ocorre quando não há ossário comunitário, como no Dom Bosco. Não ocorrem sepultamentos simultâneos ou sepultamento em covas com outros corpos ainda não exumados. O que ocorre são sepultamentos em covas que contêm despojos e pode ocorrer de uma cova ter duas ossadas, por exemplo, mais um sepultamento. Não procede a informação de que são sepultados dois ou mais corpos na mesma sepultura, mesmo no caso de desconhecidos”.

Segundo a prefeitura, “os ossários estão superlotados e não há espaço físico para novas construções”.

─ Estamos implantando os ossários sustentáveis. Já temos no São Luiz, Vila Formosa, Cachoeirinha, Itaquera. São contêineres que oferecem condições mais salubres para os funcionários.

Já o SVOC informa que só são vestidos os corpos de pessoas cujos parentes levaram as vestimentas, o que não inclui os “indigentes”.

“No momento do envio do corpo para sepultamento, o corpo é colocado no caixão fornecido pelo Serviço Funerário do Município de São Paulo que, então, é devidamente fechado pelos funcionários do SVOC. O caixão é colocado no camburão e levado para o cemitério determinado pelo Serviço Funerário do Município de São Paulo”, afirma o vice-diretor do SVOC, professor Carlos Augusto Pasqualucci.

Sobre o trabalho de buscar e encontrar os familiares das pessoas não reclamadas, ele diz que essa tarefa é responsabilidade da polícia.

─ Quando o SVOC recebe um corpo, ele espera que algum familiar se manifeste e reclame o corpo. Neste período, após 72 horas, é realizada a identificação datiloscópica e fotográfica do corpo e, além disso, informamos à Polícia Civil, através da 4ª Delegacia de Polícia de Investigação sobre Pessoas Desaparecidas, a existência desse corpo nas dependências do SVOC. É a Polícia Civil que detém as duas informações fundamentais para solucionar o desaparecimento de pessoa cujo corpo tenha sido encaminhado ao SVOC. A polícia emite tanto o boletim de ocorrência que registra o desaparecimento quanto o boletim de ocorrência que registra o óbito e direciona o corpo ao SVOC. Ao cruzar estas duas informações contidas nos referidos boletins de ocorrência sobre uma pessoa que desapareceu, a Polícia Civil localiza o corpo e, dessa forma, pode comunicar para a família o paradeiro do seu parente.

Responsável pelo IML, a Secretaria de Estado da Segurança Pública informou em nota que “antes de ser sepultado, todo corpo é lavado, fotografado e tem suas características físicas particulares anotadas, além de serem realizados a coleta de impressões digitais e material para futuro confronto genético. O corpo é entregue à funerária nu, pois suas roupas são cortadas e retiradas para a realização de exames na vítima no local e necropsia no IML”.

“O IML segue a resolução da Secretaria da Saúde nº 28, de 25/02/2013, que determina que o corpo não seja enterrado coberto por plásticos ou materiais afins, daí a sua entrega à funerária ocorrer sem a cobertura. O IML, porém, já está providenciando a aquisição de coberturas apropriadas e biodegradáveis para cobrir os corpos ao entregá-los à funerária”, diz a nota.

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