Local estratégico e palco da história: Anhangabaú segue trajetória de SP
Hoje em obras, espaço no Centro já serviu como ponto militar, foi avenida e também palco de eventos como maior comício do Diretas Já, em abril de 1984
São Paulo|Guilherme Padin, do R7
As obras de reforma do Vale do Anhangabaú, em São Paulo (SP), tiveram debates intensificados desde que, no mês passado, foram divulgadas fotos do espaço tomado por concreto, com poucas áreas verdes – crítica à qual a Prefeitura se defende dizendo que plantou 480 árvores. A revitalização é mais uma das transformações pelas quais o local do Centro Histórico tem passado ao longo do tempo. Localizado no coração da capital, o cartão-postal acompanha e se costura com as principais mudanças da sociedade paulistana.
Leia também
Entre as tantas transições desde o século 19, como explica Angelo Filardo, professor da FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo), o Vale do Anhangabaú já serviu como ponto estratégico militar e foi palco de momentos históricos como o maior comício do Diretas Já, movimento nacional que reivindicou eleições presidenciais diretas após o período de ditadura militar no país.
Ainda hoje, segundo Filardo, por sua amplitude e boa localização, possui importância única para a cidade.
Ponto estratégico militar
O professor conta que, até o século 18, o então Ribeirão do Anhangabaú possuía função de defesa, como um ponto estratégico militar. Situado próximo ao Triângulo Histórico – formado pelo Mosteiro de São Bento, a Igreja de São Francisco e a Igreja da Ordem Terceira do Carmo, todos em áreas altas da cidade e cercados de várzeas –, o local estava em uma área baixa.
“Havia ali uma lógica militar: das áreas altas que dominam as baixas, como num castelo, com as águas do Anhangabaú e Tamanduateí nas áreas baixas. Então, no início, sua importância se dava por ser uma espécie de barreira”, diz.
Durante urbanização, torna-se parque
Acompanhando a reurbanização da cidade, que ocorreu entre o final do século 19 e o início do 20, o então Ribeirão Anhangabaú é canalizado, em 1906, e o local passa por um processo de ajardinamento. A transformação ocorreu paralelamente às construções dos viadutos Santa Ifigênia e do Chá, da estação da Luz e do alargamento da avenida São João.
A partir de projeto do urbanista francês Joseph-Antoine Bouvard, no ínicio da década de 1910, torna-se um parque: “Quando a cidade começa a crescer, principalmente com a ferrovia, há uma ideia de atravessar a barreira e criar o centro novo. O centro da cidade fica permeado por esses dois parques (do Anhangabaú e Dom Pedro). Foram parques de qualidade até a decisão que se mudasse”.
Professor de arquitetura e urbanismo no Mackenzie e autor do livro “Anhangabaú: história e urbanismo”, José Geraldo Simões Júnior explica que o Plano Bouvard tinha como intenção “conectar o centro velho com o centro novo, como uma ligação leste oeste. Já existia essa ligação por cima, pelo viaduto, mas buscaram também uma solução paisagística”.
Avenida Anhangabaú
A implementação do Plano de Avenidas de Prestes Maia, nas décadas de 20 e 30, entre elas a 23 de maio e a 9 de julho, no Centro, “fez com que se implantasse uma avenida de fundo de vale cortando e descaracterizando o parque, virando uma grande avenida”, explica Filardo.
Segundo Simões Júnior, o segundo projeto, na gestão do prefeito Prestes Maia, “quando foi destruído o projeto do plano Bouvard e foi construída a avenida Anhangabaú, tinha uma outra intenção: a de fazer a ligação norte e sul da cidade”.
Como relatam os professores, o processo se intensificou anos mais tarde, na década de 40, com a construção do chamado “Buraco do Ademar”, de Ademar de Barros, uma passagem subterrânea no Vale do Anhangabaú que permitia que o trânsito da avenida São João passasse pelo Anhangabaú sem interferir na avenida Prestes Maia.
Retorno à condição de parque
Assim, como uma grande passagem de carros, o local permaneceu até o início da década de 1980, quando a Prefeitura promoveu um concurso público de reurbanização do Anhangabaú. Os urbanistas Jorge Wilheim e Rosa Grena Kliass propuseram um projeto que criava uma espécie de laje sobre as avenidas, restaurando o parque e devolvendo o local à sua função no início do século passado, e venceram o concurso.
Na gestão de Luiza Erundina, a obra iniciada pelo prefeito Mário Covas na década anterior fora concluída, e o Vale do Anhangabaú retornava à condição de parque, como relata o professor da USP.
“O Anhangabaú teve seus dias áureos de parque, que duraram pouco no início do século 20, e recuperou isso entre os anos 80 e 90, quando concluíram as obras de reurbanização. Houve a transformação do que era uma avenida larga em um grande espaço público. Um espaço densamente utilizado pela população. Um ganho para a cidade como poucos que tivemos”, aponta Filardo.
Com a reestruturação, prossegue ele, o vale se tornou uma conexão de duas áreas que compõem a região central de São Paulo: o Centro Histórico e o Centro Novo, área entre a Praça da República e o próprio Anhangabaú.
“Esse centro continua sendo a convergência de todos os caminhos. Toda estrutura da cidade foi pensada a partir dali, e o Anhangabaú é o coração desse centro. Tem uma localização insubstituível, por isso é o coração, um espaço que comporte algo de uma cidade desse tamanho. O Largo da Batata, o Museu do Ipiranga, todos estes são bons, mas nenhum desses espaços está no lugar certo”, comenta Filardo.
“A última intervenção dos anos 90 está conectada a um projeto maior de revitalização do centro da cidade, que foi preterido por outras regiões como a avenida Paulista e Faria Lima. Essa obra coroou a recuperação e revitalização do centro da cidade”, pontua Simões Júnior.
De volta à função que cumpria décadas antes, o local passou a receber grandes eventos culturais e históricos, como o citado comício do Diretas Já, que levou mais de um milhão de pessoas ao Vale do Anhangabaú em 16 de abril de 1984.
“Ele foi liberado à cidade como um espaço de ato cívico. E assim permaneceu até essa última reforma, que parece ser um plano ambicioso”, diz Filardo.
Fotos resgatam a história do Vale do Anhangabaú, no centro de SP. Confira
Obras atuais e críticas
A respeito da atual obra de revitalização do Vale do Anhangabaú, iniciada em junho de 2019 e com entrega prevista em um ano, mas atrasada para o próximo mês de setembro, Angelo Filardo afirma ter “sentimentos misturados”. Para Filardo, “melhorar um espaço como o Vale do Anhangabaú é a melhor coisa que se pode fazer. É um bom lugar para se gastar, desde que o dinheiro resulte em melhorias”.
O que deixa o professor e urbanista em dúvida é o tamanho do investimento (quase R$ 94 milhões), que em sua avaliação pode ser muito alto. “Não tenho certeza se essa obra não é um exagero. Não estava funcionando tão mal o espaço para que se quebrasse tudo e fazer tudo de novo”, aponta.
Além dos valores, outras críticas comuns às obras no cartão-postal paulistano são sobre o andamento das obras e por supostamente haver pouca área verde no projeto. Depois das avaliações negativas, os arquitetos responsáveis pela reforma decidiram se manifestar em resposta.
Por meio de redes sociais, o grupo Biselli Katchborian Arquitetos Associados afirmou que os comentários tinham como base fotos das obras ainda em andamento, e mostrou-se confiante a respeito do resultado da obra, que será conhecido dentro de um mês. “Estamos seguros de que vão apreciar”, disseram, em nota. Sobre as áreas verdes, o grupo garantiu que não somente serão mantidas as 355 árvores que ali estavam, como outras 125 se somarão ao local.
O grupo disse, ainda, que deve promover visitas guiadas ao Vale do Anhangabaú: “Convidamos a todos para que visitem pessoalmente o espaço para formar um juízo de valor baseado nessa experiência. Estamos seguros de que vão apreciar. E em nome dos valores democráticos e de rigor acadêmico que nos guiam, nos colocaremos sempre à disposição para o bom debate”.