MPT: interior paulista e litoral norte têm alta de 48% nas denúncias de trabalho análogo à escravidão
Levantamento abrange 599 municípios. Para especialistas, crise após pandemia agravou cenário para trabalho e direitos humanos
São Paulo|Guilherme Padin, do R7
Dois meses atrás, uma idosa que trabalhava há 27 anos sem remuneração para uma família em Ribeirão Preto (SP) foi resgatada do trabalho análogo à escravidão. Trabalhando como empregada doméstica, a vítima não tinha salário, controle de ponto e nem folgas.
A mulher de 82 anos acreditava que havia sido enganada pelo casal – uma médica e um empresário –, que alegava guardar o dinheiro para realizar seu sonho da casa própria. Por isso, manteve-se por quase três décadas se ocupando nas atividades para a família.
Após o resgate, a Justiça bloqueou R$ 815 mil dos empregadores e transferiu o valor à empregada doméstica, a quem foram oferecidas verbas rescisórias e o seguro-desemprego.
O caso da trabalhadora vítima da escravidão contemporânea é um entre as 157 denúncias do tipo recebidas pelo MPT (Ministério Público do Trabalho) da 15ª Região, que abrange 599 municípios paulistas, no ano passado.
O número representa um aumento de 48% em relação a 2021, quando houve 106 denúncias de trabalho análogo ao de escravo para o órgão, cuja abrangência se estende ao interior paulista e ao litoral norte.
A tendência de aumento das denúncias de trabalho escravo contemporâneo não se restringe a São Paulo, mas a todo o país, aponta a coordenadora nacional da Conaete (Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas), Lys Sobral Cardoso.
Houve altas sucessivas de denúncias nos últimos três anos, o que se relaciona à pandemia de Covid-19 e à consequente crise econômica pela qual passa o país recentemente, destaca a procuradora.
“Isso acentuou muito o quadro de vulnerabilidade socioeconômica das pessoas, o que agrava a situação no mundo do trabalho e a violação de direitos humanos no trabalho. Por consequência, há um aumento do número de denúncias como no de casos confirmados de trabalho escravo contemporâneo”, afirmou Cardoso ao R7.
Segundo o levantamento do MPT, também houve alta na quantidade de TACs (termos de ajuste de conduta) assinados pelas empresas denunciadas por mão de obra escrava entre os dois anos: em 2021, 26; em 2022, 49. Ou seja, um crescimento de 88%. Já o número de audiências extrajudiciais conduzidas por procuradores do MPT foi de 53 a 69.
O número de ações civis públicas contra os empregadores flagrados cometendo a prática de trabalho escravo permaneceu o mesmo: nove em cada ano.
Além dos efeitos da crise, os aumentos apontados pelo MPT podem ser explicados pela atuação das fiscalizações, destaca Lys Cardoso.
“Há uma melhora tanto na eficiência das respostas das dos órgãos de fiscalização quanto tanto na fiscalização em si, que aprimorou seus meios de chegar nos locais, e a comunicação com a sociedade em geral tem evoluído”, pondera.
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A observação é compartilha com Marcus Vinícius Gonçalves, coordenador regional da Conaete em São Paulo. Ele ressalta, por isso, a necessidade de se intensificar o trabalho de conscientização da população sobre a importância da denúncia.
“O trabalho escravo ainda existe, inclusive nos grandes centros urbanos, e apenas por meio da denúncia é possível tirar os casos da obscuridade e trazê-los à superfície, onde é possível levar justiça às vítimas e responsabilizar os culpados”, diz Gonçalves.
Como identificar e denunciar
O trabalho em condições de escravidão moderna pode ser identificado por qualquer pessoa e tem as seguintes características:
• Trabalho forçado (indivíduo submetido a exploração, sem poder deixar o local por conta de dívidas ou ameaças);
• Jornada exaustiva (horas diárias ou dias por semana desgastantes, que põem em risco a saúde do trabalhador ou trabalhadora);
• Servidão por dívida (trabalho para pagar dívidas ilegais que "prendem" o trabalhador à atividade);
• Condições degradantes (elementos que indicam a precariedade do trabalho: alojamento insalubre, alimentação de baixa qualidade, maus-tratos, ausência de assistência médica, saneamento básico e água potável).
A denúncia de um caso de trabalho escravo pode ser realizada pelo Disque 100. A notificação do Ministério Público do Trabalho pode ser feita pelo MPT Pardal, aplicativo disponível nos sistemas Android e iOS. A Detrae, divisão do governo federal, recebe denúncias por meio deste link.
Números nacionais
Em 2022, durante 462 fiscalizações, 2.575 trabalhadores foram resgatados em condições análogas à de escravos, 32,9% mais que no ano anterior, quando as operações resgataram 1.937 pessoas.
Os dados são do Ministério do Trabalho, e foram divulgados no dia 24 de janeiro.
Do total, 1.122 trabalhadores tiveram formalizado seu vínculo empregatício, com mais de R$ 2,8 milhões recolhidos de FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço).
Minas Gerais foi o estado com mais trabalhadores resgatados (1.070) e mais ações fiscais (117) durante o ano.
Sete em cada dez ações fiscais foram realizadas em áreas rurais, onde ocorreram aproximadamente nove em cada dez resgates de trabalhadores.