Políticas de Doria são higienistas e dificilmente vão mudar vida de morador de rua, dizem especialistas
Prefeitura rebate críticas, diz que queixas foram ouvidas e avisa que população receberá abrigo
São Paulo|Giorgia Cavicchioli, do R7
Há cerca de uma semana, a gestão João Doria (PSDB) instalou telas em volta do viaduto Doutor Plínio de Queirós, na avenida Nove de Junho, no centro de São Paulo, onde estão moradores de rua. O grupo estava em calçadas da cidade e foram levados para o local por funcionários da administração tucana.
Após a ação, que faz parte do programa de zeladoria de São Paulo, o Cidade Linda, o R7 foi até o local e constatou que a situação das pessoas que vivem lá é degradante. Especialistas no assunto dizem que as políticas adotadas por Doria são higienistas e que, dificilmente, vão mudar essa realidade.
A professora da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), Anelise G. Estivalet, afirma que as propostas do tucano já foram utilizadas por outros governos e a situação da população de rua não melhorou de lá para cá. Por conta disso, não existe nada de inovador.
— Não vai modificar a situação da população de rua. Qualquer política tem que estabelecer um vínculo entre um profissional do governo e a pessoa que está em situação de rua. Não é o que eu vejo na política do novo prefeito. Quem é da área sabe que não vai mudar.
Para ela, o nome dado para o programa de zeladoria é preocupante e já mostra a ideia de exclusão de algumas pessoas. Diz ainda que a instalação de telas para esconder moradores de rua no viaduto só foi pensada para quem está do lado de fora das redes.
— A cidade só é linda sem uma população de rua? Me incomoda. Não que a gente não queira que a nossa cidade seja linda, mas para a gente cuidar da cidade a gente precisa cuidar das pessoas, não somente da fachada. Você colocar uma tela fica muito mais aprazível esteticamente, mas é algo que é feito para quem está de fora e que não quer enxergar. Porque a gente sabe que [a população de rua] existe, mas não quer ver.
Anelise critica a política do novo prefeito e que as pessoas não estão tendo um atendimento humanizado e que parecem estar sendo tratadas como meros objetos.
— É uma política higienista. O que a gente sabe é que não adianta querer fazer uma limpeza, porque são pessoas. Você limpa aquilo que é objeto. É uma política que trata como se fosse uma opção uma pessoa estar na rua. Não é uma opção. Esse é ultimo caminho.
Para o integrante do Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoal Humana) Ariel de Castro Alves, a situação da população de rua tem se agravado por falta de ações sociais efetivas e articuladas que envolvam além da assistência social, saúde, trabalho, educação, habitação e apoio da iniciativa privada.
— As primeiras ações do programa Cidade Linda indicam tendência higienista e de limpeza social. Ocorreram alguns abusos contra moradores de rua nas proximidades da praça 14 Bis e no parque da Mooca. A atual gestão não vai conseguir fazer milagre resolvendo da noite pro dia um problema social gravíssimo e complexo.
O secretário-adjunto da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, Filipe Sabará, rebate as críticas e diz que sua vida é baseada em fazer a inclusão social da população de rua. Fundador da ONG (Organização Não Governamental) Arcah (Associação de Resgate à Cidadania por Amor e Humanidade), Sabará afirmou ao R7 que o termo higienista não está em seu dicionário e que é injusto que a gestão esteja sendo chamada dessa maneira.
— Estamos melhorando a estrutura dos centros de acolhida. Estamos nos esforçando ao máximo, mas fica difícil se esse pessoal de fora quiser fazer a interlocução falando mais alto do que eles.
Sabará garante que as pessoas que estão agora debaixo do viaduto foram ouvidas, concordaram em ir para o local e que há mais de um mês foram comunicadas de que a ação ia acontecer.
Crianças e adolescentes
Alves, do Condepe, alerta que são necessárias ações específicas sobre crianças e adolescentes em situação de rua, inclusive porque existem famílias inteiras que precisam de auxílio, até com bebês.
— Temos [também] crianças e adolescentes em situação de abandono em todas as praças e faróis do centro expandido. São necessárias ações específicas de abordagem, educação social, acolhimento e enfrentamento do trabalho infantil. Basta uma volta entre a praça da Sé e vale do Anhangabaú pra verificarmos que temos mais de 100 crianças e adolescentes vivendo nas ruas só naquela região.
De acordo com o psicólogo Thiago Calil, as falas do prefeito ainda durante a disputa eleitoral demostram um tom preconceituoso em relação aos moradores de rua que também são usuários de drogas. O especialista, que tem mestrado em saúde pública e faz trabalho de redução de danos na região da Cracolândia há 12 anos dentro da ONG (Organização Não Governamental) É de Lei, afirma que é importante considerar que o problema não é simples o suficiente para ser resolvido de forma imediata.
— É uma questão social que acontece ali por mais de 20 anos, acho bem complicado acabar do dia pra a noite. [A fala de Doria] era quase como uma urgência de dar uma resposta, somado a uma disputa política e que coloca o cuidado com as pessoas em segundo plano.
De acordo com o estudante de jornalismo Vinícius Lima, organizador do SP Invisível, projeto que conta histórias de moradores de rua, o argumento de que a tela foi instalada para proteger as pessoas não foi convincente. Para ele, toda a ação foi para deixar “o visual mais bonito para quem passa lá”.
— O próprio nome Cidade Linda diz isso. A cidade é bem mais bonita, mas meio que está botando para debaixo do tapete. Pessoa não é sujeira. Está até meio batido [o termo], mas eu achei higienista.
O secretário-adjunto, porém, afirma que ouviu diretamente dos moradores de rua e que eles preferiam ficar em um lugar cercado para terem mais privacidade.
Atendimento caso a caso
Segundo Anelise, é preciso que seja feita uma análise caso a caso de cada uma dessas pessoas, porque os motivos pelos quais elas estão nas ruas é diverso.
— Elas vêm de vários locais e em virtude de vários problemas. Existe uma proposta de oferecer um trabalho, mas é difícil oferecer um trabalho para uma pessoa que está com a estrutura de vida comprometida.
Calil concorda e afirma que cada pessoa tem uma história e que é preciso olhar com mais cuidado para ver como os especialistas podem cuidar dos que necessitam com uma diversidade maior.
— Acho que dá mais trabalho olhar caso a caso, mas que é um jeito que vai trazer mais ganhos sólidos para essas pessoas. Quando você impõe uma forma de controle de vida das pessoas, as afasta desse cuidado.
Para ele, uma boa estratégia para resolver a situação das pessoas que vivem na Cracolândia, seria manter alguns pilares do programa Braços Abertos como moradia e emprego e aprimorar algumas questões. Calil diz que é preciso pensar em um programa sólido e duradouro para que uma iniciativa boa que começou e que está dando resultados não se perca ao longo do tempo.
— O Doria tem a ideia das internações e acho que elas são válidas, mas como uma última estratégia. Tenho receio da ideia de muitas internações. Acaba anulando um pouco o sujeito. Elas são importantes em casos extremos, mas não colocaria como uma prática. A internação é uma exceção quando não se tem outra alternativa.
Lima, idealizador do SP Invisível, também reafirma a teoria de análise específicas e porque “uma história não tem nada a ver com a outra”. Ele afirma que cada um tem uma especialidade diferente e que o governo oferecer apenas um ofício para as pessoas não aproveita todo o potencial que elas podem oferecer.
— Na rua tem advogado, engenheiro, artista... você não pode falar de uma forma heterogênea.
Prefeitura pede tempo
O secretário-adjunto afirmou que a situação de cada um dos moradores de rua que estão no viaduto foi catalogada para fazer esse atendimento específico e personalizado, mas que a nova gestão só tem duas semanas de trabalho e que encaminhar cada uma dessas pessoas para a melhor área ainda vai demorar um tempo.
— Seria muito positivo a sociedade deixar a gente ajudar e não tentar atrapalhar. [Queremos] construir em conjunto com a sociedade civil.
A professora da UFRGS diz que ao oferecer uma vaga de emprego para uma pessoa em situação de rua, se não tiver um vínculo estabelecido, ela vai começar a ir nos primeiros dias, mas que por volta do décimo dia, ela não irá mais aparecer porque vai desistir. Para ela, é preciso que a estrutura da vida dessas pessoas seja mudada.
— Eu acredito que [a solução] é o fortalecimento da rede de atendimento de saúde. [É preciso] cobrar dessa questão uma manutenção desses espaços e a ampliação. E que os profissionais tenham condição de ajudar a ter uma continuidade. É cobrar essa continuidade é cobrar o reforço e a ampliação desse atendimento.