Produtores culturais veem criminalização do funk na periferia
Profissionais de cultura de bairros periféricos de SP e líder comunitário de Paraisópolis avaliam ações do Estado distintas de quem vive em áreas centrais
São Paulo|Guilherme Padin, do R7
Em um intervalo de sete dias, o anúncio de dois espaços culturais na cidade de São Paulo — um museu na avenida Paulista e o Centro da Diversidade, no Itaim Bibi — foi ofuscado pela trágica madrugada que culminou na morte de nove jovens após ação da Polícia Militar no Baile da Dz7, em Paraisópolis.
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Em comum, os dois acontecimentos têm só o fato de terem ocorrido na mesma semana e cidade. De diferente, a força que o estado utiliza dependendo do bairro, como avaliam produtores culturais de bairros periféricos e o líder comunitário de Paraisópolis.
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“A resposta do estado na periferia sempre é a política da bala. Nesses bairros, não há a possibilidade nem do diálogo”, afirma a gestora cultural Danuza Novaes da Silva.
Com percepções semelhantes sobre as ações do poder público nos bairros mais pobres e suas diferenças para áreas centrais da cidade, os profissionais de cultura não aprovaram o projeto FavelaFest, anunciado na última semana por João Doria. A ideia, que o governador nega ter ligação com as mortes em Paraisópolis, consiste em um festival de música em comunidades da capital paulista como alternativa aos pancadões.
Para Mário Matos Júnior, 34, o projeto de Doria é “uma piada de mau gosto. Quando se trata de projetos e ações para a periferia, esse governo falha e peca muito”. Se o objetivo do FavelaFest é valorizar a cultura das comunidades, prosseguiu o gestor cultural, “deveria apoiar com recursos e estrutura eventos, festivais e espaços que já promovem e difundem a cultura local. Não acredito que alguém que pouco — ou nunca — pisou nas favelas saiba de fato como promover algo para elas. O projeto já começa errado no nome: FavelaFest”.
No Mackenzie e na Vila Madalena o tratamento é outro
Produtora cultural em Parelheiros, na zona sul de São Paulo, Ciléia Biaggioli também reprova a ideia, e demonstrou ter cuidado com “essas coisas que vêm de cima para baixo”. “Se a favela vai promover um evento, tem que nascer da favela, com leis culturais, de fomento à cultura das periferias, pelo movimento cultural das periferias. Deve haver essa legitimidade”, disse Biaggioli.
Já Gilson Rodrigues, líder comunitário de Paraisópolis, avalia que o projeto vai de encontro a uma necessidade de eventos culturais e sociais nas favelas do Brasil inteiro, mas faz uma ressalva: “Devem ser eventos da própria comunidade, não pode ser do governo apenas, que vem e realiza e que vai embora de forma pontual. Devem interagir com as lideranças, e que sejam construídos em conjunto. Se for uma coisa pontual, já organizada [por eles] e sem participação da comunidade, vai ter menos aceitação e menos engajamento da comunidade.”
As festas do projeto ocorrerão entre março e maio, mês que receberá um último evento no Memorial da América Latina, na zona oeste paulistana, com os vencedores de um concurso que selecionará os melhores artistas de favela.
Políticas públicas de incentivo à cultura na periferia, como o projeto de Doria e o Funk da Hora, anunciado pela Prefeitura dois dias depois das mortes em Paraisópolis, não são comuns entre gestões estaduais e municipais, como avalia Matos:
“Nunca há um diálogo sincero no campo da cultura. Já nos bairros centrais existe o glamour, a visibilidade, parcerias e espaços. Hoje existe o boom dos grandes eventos e festivais. Deixaram políticas culturais de pesquisas, incentivos e fomentos a artistas para investirem nos grandes eventos, festivais.”
O Mapa da Desigualdade de 2019 endossa a versão do gestor cultural: de 96 distritos da cidade de São Paulo, 23 não possuem equipamentos públicos municipais de cultura. A média da capital é de quatro equipamentos para cada cem mil habitantes, e apenas 20 distritos estão acima da média – nenhum deles está na periferia.
Cultura na periferia é como o mato que nasce na calçada%3A cresce num meio hostil
Para Danuza, o fato de São Paulo ser uma cidade grade em território faz com que ações sejam centralizadas, o que ela avalia como uma das causas desse desequilíbrio, mas não a única: “A política está defasada. Precisa de um realinhamento de entendimento de democracia e sociedade. Não há alternância de poder no sentido de representatividade. O investimento não acontece porque vivemos num país racista e sem olhar pensado a longo prazo.”
Ciléia Biaggioli avalia que a conduta do poder público “é diferente daqui para o centro. Por exemplo, por que há tanto investimento em festivais grandes como o Lollapalooza, quando nós, com R$ 40 ou R$ 80 mil fazemos programação para um ano e meio ou dois anos? Sarau nas praças, nas escolas... e aí torram tudo em festivais de quatro dias”.
Matos considera que os grandes eventos ocorrem sempre no centro e regiões nobres da capital. “Quando tentam trazer algo para a periferia, ainda não entenderam que nas bordas da cidade você não chega impondo algo, você precisa dos membros desta comunidade para a realização dessas ações”, afirma.
‘Cresce como mato na calçada’
Apesar de apontarem a falta de invetimentos e políticas públicas de cultura na periferia, os produtores garantem que há projetos e opções culturais na periferia – muitos deles independentes.
“Aqui em Parelheiros, cada bairro constrói suas próprias organizações. A cultura na periferia é como o mato que nasce na calçada: cresce num meio hostil”, diz Ciléia, responsável pelo Teatro de Rocokóz, no extremo sul paulistano.
Para Mário, “a periferia historicamente é o berço da cultura do país. Os maiores artistas nacionais, as maiores expressões artísticas, ritmos nascem por lá”. Ele relembra também que há um considerável número de ocupações espalhadas pela capital, “levando arte, cultura, educação e saúde para comunidades onde o estado não chega. São espaços que salvam vidas. Literalmente”.
Danuza acredita que o acesso à cultura em São Paulo é desafiador. É preciso, segundo ela, que o olhar seja aprofundado ao que já há nas periferias: “No samba, na roda de capoeira, num baile funk ou no forró. Esses lugares não são olhados como potências culturais”.
“Quem está na base não consegue nem pensar. Tudo é muito difícil. E quando há espaços de música, cultura, são possibilidade desses corpos respirarem e terem descanso. Ter espaços culturais na periferia acaba sendo uma das poucas possibilidades de vida, de fôlego para se viver”, diz a gestora da organização Terça Afro.
Mário destaca que “a favela já tem seus espaços culturais, eventos, festivais, grupos e artistas, logo a favela só precisa de paz, estrutura — transporte, segurança, limpeza — e fomento a esses locais e artistas... um projeto com a cara e a cor da favela”.
E completa: “O governador acredita estar fazendo um grande favor às favelas. Favor ele faria se desse estrutura e condições para que esses espaços já existentes continuassem seus projetos.”
Em alguns bairros, policial diz ‘com licença’ e ‘obrigado’
A atuação da Polícia Militar em Paraisópolis, que fez João Doria revisar protocolos da corporação e foi apontada pelas famílias das vítimas e presentes ao local como causa das mortes, gerou debates sobre como o estado age dependendo do bairro.
Para Gilson, a forma distinta de agir é uma realidade visível na capital: “No Mackenzie e na Vila Madalena o tratamento é outro. Em alguns bairros a polícia diz “com licença” e “obrigado”, e aqui chega com bombas e acaba com a tragédia que aconteceu. O que queremos é um tratamento igual.”
Sobre o tratamento da Polícia Militar nas periferias, a impressão para Ciléia Biaggioli é de que há carta branca para as ações: “Há uma rede de proteção pra polícia fazer o que quer”.
O Mapa da Desigualdade também avaliou outros aspectos nos quais há valores discrepantes entre periferia e centro. Os bairros periféricos aparecem com números abaixo da média ou até mesmo zerados, por exemplo, nas categorias “Centros culturais, casas e espaços de cultura”, “Cinemas”, “Museus”, “Acervo de livros para adultos”, “Acervo de livros infanto-juvenis” e “Teatros”.
O estudo também mostra, por exemplo, que, na mesma São Paulo, dependendo do bairro, há quem viva em média até os 57 anos (Cidade Tiradentes) e outros que chegam aos 80 (Moema).
Mário Matos se recorda de uma pesquisa realizada pela organização em que atua, que indicou que moradores locais preferiam ir ao centro para consumir cultura. “Falamos com 150 moradores do Campo Limpo, em 2017. Alguns alegam medo – e aqui se inclui medo de bandido e da polícia, porque o negro nas ruas corre risco de todos os lados –, falta de estrutura dos espaços, falta de um bom e ágil transporte público e grandes atrações”, relata ele.
“Onde o estado falha, nós estamos lá para cobrir. E não queremos medalhas, troféus ou dinheiro... precisamos apenas de paz para trabalhar”, completa.
‘Cultura periférica sempre foi criminalizada’
Para todos os entrevistados, há um consenso de que os bailes funk são constantemente estereotipados e criminalizados pela sociedade e até pela política.
Danuza Novaes ressalta que “a criminalização de todas as práticas culturais periféricas sempre existiu. Capoeira, samba e todas as outras formas são criminalizadas. Esse pensamento escravocrata existe até hoje, e é mantido até hoje pelos grupos políticos que estão nas lideranças. É uma perseguição, querem controle e a manutenção da ordem de como as coisas sempre foram”.
Ciléia é mais direta. “É burrice criminalizar o funk. É uma grande burrice”, diz ela, que relata um caso em sala de aula:
“Perguntei o que os alunos gostavam de ouvir na aula, e responderam que é funk. Quando sugeri para a gente ouvir, eles falaram que era proibido, e não conseguem entender o porquê. Por que um povo todo não pode se manifestar?”
Para Gilson, a discussão “volta de novo nesse contexto de olhar as pessoas não como gente, mas pela cor ou classe social. Querem diminuir e menosprezar o funk”.
Como se posicionaram a prefeitura e o governo
A reportagem do R7 solicitou à secretaria de cultura da Prefeitura de São Paulo questionamentos uma avaliação sobre os dados de equipamentos públicos de cultura do Mapa da Desigualdade e questionamentos acerca de investimentos de cultura na periferia da capital. A Prefeitura enviou o seguinte comunicado:
A Prefeitura de São Paulo possui a maior rede de equipamentos públicos de cultura do Brasil. A rede de bibliotecas públicas, por exemplo, totaliza mais de 100 unidades, considerando as bibliotecas de bairro e também as que funcionam dentro dos Centros Educacionais Unificados (CEUs). Além disso, a rede conta também com 19 Casas de Cultura, 10 centros culturais, em locais como Grajaú, Cidade Tiradentes, Vila Nova Cachoeirinha etc.; 10 teatros municipais, 15 pontos de leitura; 13 bosques de leitura e 14 casas históricas. Além dos espaços culturais, há também programas de incentivo à cultura desenvolvida nas periferias da cidade como o programa VAI e o Fomento à Periferia, ambos com editais anuais.
À Secretaria de Cultura do governo do estado, a reportagem enviou perguntas sobre o mesmo tema e solicitou o número de equipamentos públicos de cultura sob gestão estadual e seus respectivos locais. Até a publicação deste texto, não houve resposta.