Reconhecimento por foto e falta de perícia induzem falhas na Justiça
Condenado por roubo à mão armada na Justiça, ajudante de pedreiro de 60 anos, em tratamento contra câncer, se diz inocente e luta para sair da prisão
São Paulo|Fabíola Perez, do R7
O pintor e ajudante de pedreiro Francisco Carvalho dos Santos, de 60 anos, teve a vida sentenciada duas vezes nos últimos sete meses. Da primeira vez, no dia 6 de agosto do ano passado, quando voltava para casa a pé, no bairro da Saúde, na zona sul de São Paulo, e foi identificado por policiais como suposto autor de um assalto em um posto de combustível. Preso e colocado dentro de um veículo, Francisco percorreu o trajeto com os policiais até chegarem em sua casa, na Vila Clementino.
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“Eles chegaram com ar de deboche, com a arma em punho e falaram ‘por que você está nervosinha?’”, lembra a esposa Cosmiranda Rocha dos Santos, de 51 anos. A emprega doméstica afirma que quando viu o marido no veículo imaginou que havia passado mal. “Você sabia que ele é um ladrão?”, teriam dito os policiais ao levarem Francisco à delegacia.
Da segunda vez, a sentença veio da Justiça. Em fevereiro desse ano, o juiz Marcus Fleury Silveira de Alvarenga, da 12ª Vara Criminal da Barra Funda, em São Paulo, condenou Francisco por roubo mediante ameaça por duas vezes, com uma pena de sete anos, nove meses e 10 dias de reclusão. A condenação é baseada em testemunhos realizados por vítimas e depoimentos dos policiais que teriam identificado em Francisco características semelhantes às do suspeito procurado.
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Desde agosto do ano passado, ele está preso no Centro de Detenção Provisória de Pinheiros e, agora, com a ajuda da esposa, luta para além de provar sua inocência, ir às sessões de quimioterapia para tratar um câncer de colón mesmo dentro da cadeia. “Esse tipo de injustiça sempre acontece com pessoas negras e pobres”, diz Cosmiranda. “Ele nunca roubou, nunca teve arma e nunca teve passagem pela polícia.”
"Não há porque desacreditá-lo justamente por ser policial."
A pesquisa “Prova Sob Suspeita”, realizada em novembro, pelo IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) aponta a existência de fragilidades em algumas provas. De acordo com o estudo, 57,6% processos é realizado a partir de prisões em flagrante e 74,5% dos inquéritos que resultaram em processo não recorreram a mais investigações, as diligências complementares.
Dados mostram ainda a presença massiva de policiais ouvidos como testemunhas. Além disso, um levantamento do Instituto Sou da Paz sobre prisões em flagrante na cidade de São Paulo mostrou que em 76,6% dos casos policiais militares deram depoimentos para o inquérito.
A acusação
O ajudante de pedreiro e pintor foi acusado de ter assaltado um posto de gasolina duas vezes no bairro da Saúde. A primeira delas, no dia 6 de junho, porque teria roubado dois celulares e a quantia de R$ 438 em espécie do caixa do estabelecimento. No dia 6 de julho, Francisco foi mais uma vez acusado de ter roubado um relógio, um anel e R$ 320.
Policiais foram informados do roubo e passaram a fazer buscas na região e, segundo a condenação, “encontraram o indiciado cujas características coincidiam com as fornecidas e realizaram a abordagem.” Segundo o documento, a prisão em flagrante foi convertida em custódia preventiva.
"É uma tarefa quase impossível obter provas para comprovar um álibi."
Para a advogada de defesa Débora Nachmanowicz, o processo possui diversas falhas. "Francisco não frequentava o posto e não conhecida os funcionários. O estabelecimento ficava próximo ao local onde realizou um serviço de pintura por cinco dias”, diz. Débora diz ainda que pediu as imagens das câmeras do posto que registraram os assaltos. O posto, porém, não forneceu o conteúdo à polícia.
O R7 entrou em contato com o 16 º DP (Vila Clementino) e confirmou que a polícia não recebeu as imagens do estabelecimento. “Às vezes, é uma tarefa quase impossível obter as provas técnicas para comprovar um álibi, a partir de câmeras de segurança ou registros de celular”, diz Dora Cavalcanti, diretora do Innocence Project Brasil, iniciativa que oferece apoio jurídico a pessoas condenadas (em casos em que já se esgotaram todos os recursos). “Agora a defesa pode requisitar ao juiz o pedido das imagens de um estabelecimento. É preciso ter um cuidado para que a prova oral não reine sozinha.”
Na sentença, o juiz afirma que “muito superiores às referidas filmagens estão firmes reconhecimentos por três vítimas”. No texto, Alvarenga escreve “muito provavelmente referidas imagens já não existem, vez que não requisitadas a tempo fazem-se novas filmagens automaticamente.”
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Como nem a polícia, nem a Justiça tiveram acesso às imagens do posto de combustível, a Defesa decidiu então buscar imagens da câmera de segurança do prédio vizinho para tentar provar que Francisco não era o autor do crime. “Temos 24 horas de gravação comprovando que ele estava em casa nos dias dos assaltos em junho e julho. Há imagens em que Francisco coloca o lixo para fora de casa e retorna. Mas o juiz não considerou.”
Um dos aspectos mais importantes do direito é, segundo especialistas, é que a acusação deve provar a participação do acusado no delito. “Nunca é a defesa que precisa provar a inocência de uma pessoa.” Na condenação, o juiz afirmou que as 24 horas de imagens captadas pelas câmeras do edifício continham “absoluta falta de nitidez e distância do suposto acusado, inviabilizando assim qualquer possibilidade de identificação”.
"Há imagens em que Francisco coloca o lixo para fora de casa e retorna. Mas o juiz não considerou."
Ele disse ainda que “nada elucidam acerca dos fatos, sequer podendo se inferir que se trate mesmo de Francisco”. Na dúvida, diz a advogada, ele deveria ter pedido um exame pericial no vídeo. O R7 entrou em contato com o Tribunal de Justiça e com o Fórum Criminal da Barra Funda e recebeu a resposta de que “tudo o que ele poderia falar sobre o caso está na sentença.”
Reconhecimento
Outro problema recorrente é que durante a busca pelos suspeitos ator do crime o primeiro reconhecimento é conduzido por policiais na viatura e por meio de telefone celular. “É preciso melhorar a forma como os reconhecimentos são feitos”, diz Dora. Embora ainda não existam números sobre condenações geradas a partir de falhas na Justiça, o projeto recebeu, somente no ano passado, 800 pedidos de assistência.
“A indução é capaz de desvirtuar por completo o processo. Em vez de uma foto apresentada à vítima, o correto seria comparar pessoas.” Dados do Innocence Project nos EUA mostram que em 82% dos casos de roubo à mão armada em que um erro judicial foi revertido, o reconhecimento equivocado foi o responsável pela falha.
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A condenação de Francisco afirma que ele foi reconhecido pelas vítimas e pelos policiais. No texto, o juiz após os dois assaltos no posto, o dono do estabelecimento ligou para a polícia informando que o suspeito estaria nas proximidades e que iria tentar praticar outro crime. “Os frentistas reconheceram o réu dentro da viatura”, diz o documento.
Em outro trecho, o juiz afirma que “quanto ao depoimento do policial, não há porque desacreditá-lo justamente por ser policial. Além de estar no exercício de sua função pública preventiva de grande relevância, não tem qualquer interesse em prejudicar quem quer que fosse.” “Sabemos que há uma questão racial bem costumeira no padrão de comportamento da polícia”, diz a defesa.
"Em vez de uma foto apresentada à vítima%2C o correto seria comparar pessoas.”
As sentenças proferidas pelos juízes, segundo especialistas, se apoiam sobretudo na prova oral testemunhal. “Em eventos traumáticos, os registros são frágeis. O estresse que a pessoa passa no momento, a falta de iluminação afeta de forma muito aguda a memória, criando as chamadas memórias falsas”, diz Dora.
Luta contra o câncer e a prisão
A esposa, familiares e amigos encabeçam uma campanha nas redes sociais pedindo Justiça. Uma das sobrinhas escreveu: “minha família está em pedaços”. Enquanto isso, a defesa deverá pedir um novo habeas corpus. Francisco se recupera de um câncer de colón. Desde que foi preso, ele tenta dar sequência ao tratamento de quimioterapia. “Ele chegou a ser levado para a Santa Casa, mas quando não tem escolta, não vai”, diz a advogada. “Com as idas não tinham constância, o tratamento foi interrompido.”