Violência contra mulher cresce 64% em SP em 3 anos, diz pesquisa
Mapa da Desigualdade mostra que Sé tem 7,6 vezes mais mulheres vítimas de violência do que distritos como Marsilac, Vila Andrade e Alto de Pinheiros
São Paulo|Fabíola Perez, do R7
O companheiro de Ana Paula Vieira, de 30 anos, nunca pediu explicitamente que ela deixasse de trabalhar. “Mas era insuportável”, diz ela sobre a forma como o marido se comportava diante do fato de ela sair de casa todos os dias para buscar a própria renda. “Ele pegava meu celular, queria ver com quem eu estava falando, se eu estivesse em reunião ele ligava para as pessoas que trabalhavam comigo. Se demorasse para chegar, ele brigava e me batia. No dia seguinte, entrava às 5h30 no trabalho e inventava todas as desculpas para disfarçar as manchas roxas”, relata.
Veja atmbém: Desigualdade em SP: morador da periferia vive 23 anos menos
Casos de violência doméstica, como o de Ana Paula, aumentaram 64% nos últimos três anos na capital paulistana. De acordo com o Mapa da Desigualdade, realizado pela Rede Nossa São Paulo, e divulgado nesta quinta-feira (29) o número de pessoas vítimas de violência doméstica em 2016 era 50.556 na cidade paulista.
"Se eu demorasse para chegar do trabalho%2C ele brigava e me batia."
Em 2019, esse número saltou para 83 mil. A pesquisa também relevou em quais distritos da cidade há uma maior incidência de casos registrados. As regiões da Sé, Barra Funda, Brás e Pari são as que possuem maior coeficiente de mulheres vítimas de violência na cidade. Nesses distritos, as violências física, psicológica, ameaças, violência sexual e patrimonial ocorrem 7,6 vezes mais do em Marsilac, Vila Andrade, Alto de Pinheiros e Perdizes.
Os dados obtidos a partir da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP) mostram que, em 2019, 63% dos casos de violência contra a mulher ocorrem dentro da residência e 37%, em espaços públicos, terminais de transporte, rodovias, comércios, restaurantes e outros estabelecimentos. “A hipóteses para a Sé ter um maior coeficiente de vítimas é que naquela região estão concentradas oportunidades de trabalho formal e estabelecimentos de saúde”, afirma Luciana Itikawa, membro do Conselho Diretor da organização internacional de mulheres WIEGO (Women in Informal Employment Globalizing and Organizing) ou, em tradução livre, "Mulheres no Trabalho Informal, Globalizando e Organizando".
As regiões da Sé%2C Barra Funda%2C Brás e Pari são as que possuem maior coeficiente de mulheres vítimas de violência na cidade
Quando as mulheres não obedecem a hierarquia social dos papeis de gênero, explica Luciana, e passam a trabalhar em oportunidades formais e informais, elas se tornam vítimas de violência. “Nessas regiões apontadas pela pesquisa, como Sé, Pari, Brás e Barra Funda, há uma concentração de oportunidades que fazem as mulheres saírem de suas casas, trabalhar e circular no espaço público”, afirma a pesquisadora e professora da FMU. “Onde elas estiverem circulando, vão sofrer violência, uma vez que a violência contra a mulher ocorre nos espaços domésticos, mas também em espaços públicos de circulação.”
“Tudo bem eu trabalhar, mas a louça tinha que estar limpa e o almoço pronto”
Após 11 anos em um relacionamento abusivo, Ana Paula conseguiu se divorciar. “Durante o namoro, eu não percebia, mas ocorriam episódios de violência psicológica”, diz. “Achava que me fazer trocar de roupa, não conviver com determinadas pessoas eram formas de me proteger.” Com o passar do tempo, ela relata que as brigas e discussões com o marido se intensificaram. “Ele sempre tentava jogar os erros para cima de mim, a culpa era sempre minha”, diz. “Se eu gastasse R$ 20 do meu próprio dinheiro, precisava dar explicação, se eu demorasse para fazer o almoço, tinha que aguentar xingamentos.”
Leia mais: Sé tem 290 vezes mais oferta de trabalho formal do que Anhanguera
Ana Paula conta que trabalha fora de casa desde os 15 anos. “Fazia estágios, entrei na faculdade, fui trabalhar como recepcionista de uma empresa e depois comecei a trabalhar com comunicação corporativa”, afirma. “Apesar de ganhar meu dinheiro, tinha que transferir para ele pagar as contas de casa, por isso, não tinha controle sobre as minhas finanças.” Moradora de Heliópolis, Ana Paula trabalhou em bairros como Ipiranga, Barra Funda, Pompeia e Sé e na região da Paulista. “As pessoas do meu trabalho não entendiam porque eu faltava e porque estava sempre coberta, mesmo em dias de calor.
“Ele estava surtado com as crianças%2C ameaçou de se matar e de me matar. Desligou meu telefone e o dele. Eu batia na parede pedindo ajuda”
Das primeiras vezes que foi agredida, Ana Paula se lembra que foram após cobranças por ter deixado de fazer atividades domésticas. “Ele falava que tudo bem eu trabalhar, mas eu tinha que estar com a louça limpa, as crianças cheirosas e o almoço sem atrasar”, diz. “Não podia ter lazer com as minhas amigas ou comprar coisas que gostava sem dar satisfação.” Ana Paula afirma que quando começou a se relacionar com o ex-marido pesava 88 kg e após o divórcio estava com 45 kg.
Somente em julho do ano passado, Ana Paula teve coragem para denunciá-lo e registrar um boletim de ocorrência por agressão física. “Ele passou o dia todo me obrigando a publicar uma foto com ele. Postei e depois de um tempo apaguei. Pensei ‘não posso ser refém dele para sempre’”, afirma. Ao chegar em casa, após o expediente de trabalho, Ana Paula diz ter encontrado o ex-companheiro transtornado.
“Ele estava surtado com as crianças, ameaçou de se matar e de me matar. Desligou meu telefone e o dele. Eu batia na parede pedindo ajuda.” Ana Paula conta que só conseguiu sair de casa porque o marido havia ingerido uma grande quantidade de remédio. “Fui para a casa da minha avó e minhas amigas do trabalho me ajudaram a encontrar um advogado.”
Acompanhada da advogada, Ana Paula foi até a delegacia da mulher da Sé, no centro da cidade, para registrar o boletim de ocorrência. “Se ela não estivesse comigo não teria tido coragem para denunciar, tanto que não conseguir fazer isso em 11 anos”, afirma. “Perdi a conta de quantas vezes apanhei, quantas vezes ele ergueu a faca para mim. Eu, que nasci na periferia, sei o quanto é difícil contar com a polícia.”
Após registrar o boletim de ocorrência, Ana Paula relatou os episódios de agressão à família. “Todos ficaram horrorizados.” Hoje, ela vive com a tia e a avó no quintal de uma casa. “Sei que tudo isso só foi possível porque tive uma rede de apoio. Estou um pouco mais tranquila, mas sei que não posso baixar a guarda.”
A coordenadora da Rede Nossa São Paulo, Carolina Guimarães, afirma que uma das maiores dificuldades para as mulheres vítimas de violência doméstica é a falta de equipamentos adequados. “Apenas sete delegacias da mulher funcionam durante a madrugada”, afirma. Segundo ela, o Mapa da Desigualdade mostra que os casos de violência contra a mulher ocorrem em toda a cidade. “A ideia é que se tenha mais equipamentos e centros de acolhida para evitar o processo doloroso imposto à vítima.”
De acordo com o urbanista e professor da Universidade de Sorbonne, Carlos Moreno as cidades devem ser pensadas para aproximar os cidadãos de seus locais de trabalho, espaços de lazer e necessidades básicas. O ideal, nesse sentido, seria ter os principais serviços e atendimentos a uma distância de 15 minutos. Este ideal de qualidade de vida urbana, no entanto, ainda está bem distante da realidade das mulheres vítimas de violência que vivem em São Paulo. “A distância, a tarifa de ônibus é um obstáculo. Muitas não têm internet para fazer um boletim online e vão enfrentar horas em um transporte público para chegar à delegacia.”
Conscientização e mobilização
Apesar da dificuldade enfrentada pelas mulheres nas delegacias, Luciana Itikawa afirma que há uma maior conscientização em outros setores da sociedade. “Empresas têm criado canais dentro de aplicativos para as vítimas denunciarem quando se sentirem acuadas nas delegacias, as ONGs têm produzido conteúdo nas redes sociais para disseminar informações e as promotoras legais têm feito um trabalho importante de formação de lideranças mulheres na periferia ”, diz. “As mulheres se articularam em rede em diversos setores da sociedade civil para que a violência não permaneça como um tabu, para que não seja uma questão de foro íntimo e sim que mobilize toda a sociedade.
Graças a um processo de conscientização de décadas que Jojô, como é conhecida, de 72 anos, aprendeu que quando o ciclo de violência começa traz consigo uma série de outros problemas. Após 50 anos de casamento e pelo menos cinco boletins de ocorrência contra o ex-marido, dona Jojô conta que foi acusada pelo então companheiro de ter outros relacionamentos enquanto era casada. “Ele me acusava de ter outros homens e queria que eu fosse como uma prisioneira”, diz. “Mas, hoje, ninguém domina a minha vida. Faço o que eu quero.”
"O delegado olhou o laudo do médico da minha perna quebrada e me mandou voltar para casa. Naquele momento%2C me senti violentada por três homens”
Baiana, Jojô relata que sofria preconceito por parte da família do marido por ser nordestina. Além disso, era impedida de trabalhar. “Vendia roupas nas portas das fábricas, de construção civil. Como eram muitos trabalhadores homens, ele me difamava, surtava. Tenho trauma de ouvir certos xingamentos de tanto que já escutei. Se eu reagisse, ele se tornava a vítima.”
Hoje dona de casa, Jojô relata que em todos os cinco boletins de ocorrência que fez contra o marido foi deslegitimada nas delegacias. “Uma vez ele quase quebrou a minha perna, fiz o exame de corpo de delito e o médico disse que não era nada. O delegado olhou o laudo do médico e me mandou voltar para casa”, relata. “Naquele momento, me senti violentada por três homens”, afirma.
Divorciada há seis anos, Jojô ainda cuida do ex-companheiro acometido pela doença de Alzheimer. “Aceitei desde que ele não viesse com violência e querendo me dominar, logo que cheguei ele ainda chegou a gritar. Assim que ele melhorar quero voltar a ser independente.”