Câncer: tratamentos que mudam geneticamente células de defesa de doentes avançam em SP
Terapia é feita coleta de células do sistema imunológico do paciente, alteradas em laboratório e injetadas de volta na pessoa para estimular a destruição da células tumorais
Saúde|Theo Ruprecht, Agência FAPESP
Células de defesa são retiradas do paciente, reprogramadas geneticamente em laboratório e, então, reinfundidas para enfrentar o câncer. Essa é a terapia à base de células CAR-T, uma estratégia tão promissora quanto complexa.
A boa notícia: o Centro de Terapia Celular (CTC), da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto, vem avançando em um tratamento do tipo com menor custo, além de investigar terapias celulares semelhantes.
“Desde 2019, já tratamos sete pacientes, todos em uso compassivo, com uma terapia de células CAR-T desenvolvida no centro. Obtivemos resultados positivos e pretendemos seguir com estudos para oferecer um tratamento nacional mais acessível”, diz Rodrigo Calado, um dos pesquisadores principais do CTC e diretor científico da Fundação Hemocentro de Ribeirão Preto.
A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) aprovou em fevereiro o primeiro registro sanitário no país de uma terapia à base de células CAR-T para leucemia linfoblástica aguda e linfoma difuso de grandes células B, produzida pela farmacêutica Novartis.
Em abril, um tratamento do tipo para mieloma múltiplo da Janssen-Cilag Farmacêutica também foi autorizado pela agência reguladora brasileira. Nos Estados Unidos, essas terapias custam na faixa de US$ 400 mil. No Brasil, os valores ainda não foram definidos.
“Nossa expectativa é oferecer uma alternativa que custe entre 10% e 15% dos valores praticados no mercado”, afirma Calado.
Uma economia tão grande viria, entre outros fatores, da capacidade de realizar todo o processo no Brasil a partir de uma tecnologia proprietária. Nas terapias com células CAR-T, os profissionais coletam linfócitos T do próprio paciente com câncer e os modificam geneticamente para que expressem moléculas capazes de identificar e instigar uma resposta mais agressiva contra o câncer (são os chimeric antigen receptors, ou CAR na sigla em inglês). Esses linfócitos são então expandidos – ou multiplicados – e, aí, reinfundidos na pessoa.
Como a manipulação genética dessas células requer infraestrutura e conhecimento de ponta, a terapia com células CAR-T aprovada no Brasil (da Novartis) exige que os linfócitos T dos pacientes sejam congelados e levados até um centro nos Estados Unidos. Uma vez processados, eles fazem a viagem de volta, em mais uma etapa custosa. Os processos fabris e mesmo a mão de obra também pesam no valor elevado.
Atualmente, o CTC está em vias de publicar um artigo reportando os primeiros casos tratados na instituição com uso compassivo. “A mensagem mais importante desse trabalho é a de que conseguimos desenvolver uma tecnologia brasileira para potencialmente oferecer uma terapia com células CAR-T”, afirma Renato Cunha, pesquisador do CTC e coordenador do Serviço de Transplante de Medula Óssea e Terapia Celular do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP).
No momento, o tratamento está em fase de validação junto à Anvisa. “A partir daí, realizaremos estudos clínicos para buscar os registros necessários”, conta Cunha.
Pesquisas clínicas como essa demandam, além de metodologia rigorosa, um número considerável de voluntários e uma infraestrutura complexa. É aí que entra o financiamento da FAPESP, aprovado no âmbito do Programa Ciência para o Desenvolvimento.
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Avanços e combinações
Atualmente, as terapias com células CAR-T são aprovadas apenas contra certos cânceres hematológicos, como leucemias e linfomas de células B. Uma revisão de estudos alemã indica que, para tumores sólidos (de mama, próstata, pulmão etc.), a técnica obteve resultados sustentados em somente 4% dos pacientes. Outro artigo traz um número ainda menor: 1%.
“Os tumores sólidos em geral produzem moléculas que promovem uma imunossupressão local. Elas freiam a ação das células de defesa convencionais e também a das CAR-T”, afirma Lucas Botelho de Souza, coordenador do Laboratório de Transferência Gênica do CTC. Essas moléculas são chamadas de checkpoints imunológicos.
Na última década, surgiram medicamentos imunoterápicos que burlam esses checkpoints (são os inibidores de checkpoints). Eles aprimoraram consideravelmente o tratamento contra diferentes cânceres, inclusive em estágio avançado. “Mas, às vezes, não trazem o resultado esperado porque os linfócitos naturais do corpo podem não reconhecer a doença como uma inimiga”, explica Botelho de Souza.
Diante disso, pesquisas têm avaliado o uso combinado das células CAR-T com os inibidores de checkpoints. Enquanto os fármacos removeriam os freios disparados pelo câncer, as células CAR-T comandariam um ataque intenso e personalizado contra o alvo em questão. “Por causa do histórico no CTC, fomos convidados a fazer uma revisão desses artigos para consolidar as descobertas sobre o assunto”, diz Botelho de Souza.
A revisão mostra que, em certos cenários, a união dessas estratégias conseguiu conter o câncer no laboratório e mesmo em voluntários. “Mas, em outros, os resultados não são tão bons. Há uma variabilidade grande”, aponta Botelho de Souza.
Uma possibilidade em pesquisas no CTC – tanto para cânceres sólidos como hematológicos – é construir células CAR-T com diferentes receptores e coestimuladores, que controlem a doença por diferentes vias. “Estamos também avaliando o efeito de retirar receptores das células que são afetados pelos checkpoints do câncer”, complementa o professor.
Em dados clínicos, por exemplo, nota-se que os pacientes que respondem melhor ao tratamento com as células CAR-T apresentam maiores concentrações no organismo de duas interleucinas: a 17 e a 23. Com essa informação em mãos, profissionais do CTC reprogramaram linfócitos para estimular a produção das duas moléculas. “Nos estudos de laboratório, os resultados são promissores”, revela Botelho de Souza.
“Um dos desafios das combinações ou das múltiplas edições nas células CAR-T é evitar que o sistema imune se torne muito agressivo para o paciente”, pondera Cunha. Tanto no produto aprovado pela Anvisa como no que deve ir para ensaios clínicos no CTC, as células CAR-T contam com um receptor personalizado e uma proteína coestimuladora. “São células CAR-T de segunda geração”, aponta o professor.
Cunha, aliás, é coordenador de um consenso da ABHH (Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular) que se concentra no uso de células CAR-T no Brasil. “Já temos princípios estabelecidos para indicação do tratamento, controle dos efeitos colaterais e manufatura das células, entre outras coisas. Isso mostra que o Brasil tem a maturidade necessária para receber esse tipo de tecnologia e para tentar torná-la mais acessível”, avalia.
Tratamento universal
Todo tratamento aprovado à base de células CAR-T é feito com linfócitos do próprio paciente, porque o corpo rejeitaria células de outros indivíduos. Essa particularidade demanda uma infraestrutura avançada para colher as células, transportá-las em segurança, manipulá-las e reinfundi-las. “Da identificação do paciente adequado até a aplicação do tratamento, às vezes se passam 40 ou até 60 dias. E essa espera pode não ser viável”, constata Cunha.
Para tornar essa terapia celular mais acessível e prática, pesquisadores pelo mundo vêm investigando alterações genéticas nas células CAR-T que as tornariam “universais”. Em outras palavras, uma única linhagem de linfócitos T daria origem a células CAR-T para diferentes pacientes.
Outra possibilidade em testes para alcançar um tratamento universal envolve trocar o tipo de célula de defesa usado. Em vez dos linfócitos T, os pesquisadores fariam as edições genéticas nas células exterminadoras naturais (NK, sigla em inglês para natural killers), que não têm esse problema de incompatibilidade. A esse método se dá o nome de terapia com células CAR-NK. “Ele traz essa praticidade e também parece produzir um perfil inflamatório mais seguro, com efeitos colaterais menos intensos”, diz Botelho de Souza.
Sob a coordenação da professora Virginia Picanço-Castro, um grupo do CTC vem trabalhando no desenvolvimento de diferentes células CAR-NK para verificar qual teria maior potencial. O time inclusive publicou um artigo em que revisa caminhos promissores da área. “No momento, há poucas pesquisas com seres humanos. Mas isso é uma questão de tempo”, argumenta Botelho de Souza.
Segundo ele, uma desvantagem das células CAR-NK é sua baixa persistência no organismo. Ao contrário das CAR-T, elas parecem desaparecer mais rapidamente, o que dificultaria um controle sustentado do câncer. Além disso, a etapa de proliferação e de conservação das células no laboratório é especialmente desafiadora.
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