Criança recebe remédio de R$ 2 milhões com um ano de atraso
Primeira dose foi aplicada 339 dias depois de liminar que obriga o governo a comprar o remédio, mas outras famílias ainda lutam pelo mesmo direito
Saúde|Gabriela Lisbôa, do R7
O dia 9 de março de 2018 vai entrar para o calendário da família Trevellin como o mais importante dos últimos cinco anos. Foi neste dia que Gianlucca, 5, recebeu a primeira dose de um medicamento chamado Spinraza, capaz de controlar uma doença rara chamada atrofia muscular espinhal, conhecida como AME.
O remédio só chegou um ano depois de a Justiça decidir que o Ministério da Saúde deveria comprar o remédio para que o menino fizesse o tratamento.
O alto custo do Spinraza faz com que a compra do remédio por uma família brasileira seja praticamente impossível. No primeiro ano, para que a criança tome as seis doses necessárias, seria preciso desembolsar mais de R$ 2 milhões.
O que é AME
A atrofia muscular espinhal, também chamada de AME, afeta aproximadamente uma criança em cada 10.000 nascimentos. É uma doença genética, degenerativa, que causa problemas nos neurônios motores e leva a uma fraqueza muscular progressiva. Pode se manifestar tanto nos primeiros meses de vida quanto na fase adulta.
A AME é causada por uma mutação genética nas duas cópias do gene SNM1, localizados no cromossomo 5. Uma em cada 40 pessoas tem essa mutação. A criança herda uma cópia do pai e outra da mãe. Para que o bebê nasça com a doença, é preciso que os dois passem para o feto o gene defeituoso. A chance de isso acontecer é de 25% em cada gravidez.
Em pouco tempo, a doença pode impedir que o paciente faça coisas simples como sentar sem apoio ou respirar sem a ajuda de aparelhos - já que também está associada à insuficiência respiratória. Sem força, a musculatura ligada à respiração para de funcionar e acaba causando a maior parte das mortes por AME.
Por meio de um aconselhamento genético, o casal pode saber se existe a possibilidade de ter um filho com atrofia muscular espinhal ou outras doenças.
A história de Gianlucca
Quando Gianlucca tinha cinco meses de vida, os pais começaram a desconfiar que alguma coisa estava errada. “Ele não firmava o pescocinho, a coluna, não conseguia levantar os bracinhos”, conta o comerciante Renato Trevellin, pai do menino.
O ano era 2012 e a família começou uma verdadeira peregrinação em consultórios médicos. “Diziam que ele era preguiçoso, que iria melhorar, chegaram a indicar fisioterapia”, lembra Renato.
Nem o Renato e nem a esposa, Kátia, tinham casos conhecidos de AME na família.
Diagnóstico de AME
Aos nove meses, os pais perceberam que o bebê estava suando frio e o levaram para o hospital. Era por causa da dificuldade de respirar e só então o motivo começou a ser investigado. A primeira suspeita foi meningite, descartada depois de um exame. O diagnóstico correto só veio meses depois, com um exame de DNA: atrofia muscular espinhal. O resultado chegou no dia do aniversário de 1 ano do menino, em maio de 2013.
A mãe do Gianlucca, Kátia Trevelin, 41, conta como foi difícil entender e começar a enfrentar a doença. Ela diz que o amor que sentia pelo filho fez com que ela jamais pensasse em desistir.
“Receber um diagnóstico desses, para uma mãe, para um pai, você perde totalmente o chão, fica em uma corda bamba. Como é uma doença rara e degenerativa, vem na cabeça tudo o que tem de pior. Mas o olhar do meu filho foi o grande começo para gente lutar por ele, porque ele queria viver. O olhar dele dizia: eu quero viver”, lembra Kátia.
Na época, ainda não existia um tratamento para a doença, mas toda a família se mobilizou para estudar e pesquisar o que estava sendo descoberto fora do Brasil.
Em 2014 uma farmacêutica começou a testar um novo remédio em crianças norte-americanas, o Spinraza, e em 2015 começaram a aparecer os primeiros vídeos que mostravam esses pacientes dando os primeiros passos, se alimentando pela boca e conseguindo fazer coisas que, para Gianlucca, era impossível. Foi quando tudo começou a mudar.
“Os médicos diziam que ele tinha prazo de validade. Que não passaria daquela noite, que não passaria de uma semana, que não viveria mais um ano, que nunca existiria um tratamento. Quando eu vi os vídeos, acendeu uma esperança, a gente jamais iria desistir da vida do nosso filho”, conta Renato.
Batalha na Justiça
A descoberta do tratamento foi o início de uma longa batalha. A família entrou na Justiça para pedir que o Ministério da Saúde começasse a importar o medicamento. A primeira decisão favorável veio no dia 30 de março de 2017.
O governo recorreu, alegando que o remédio ainda não era regulamentado no Brasil.
A situação mudou no mês de agosto do mesmo ano, quando a Anvisa regulamentou o medicamento e permitiu que ele começasse a ser vendido no país.
Mesmo disponível para os brasileiros, o alto custo - mais de R$ 2 milhões por uma caixa com seis doses -, fez com que a família Trevellin voltasse à Justiça.
Novas decisões favoráveis vieram, mas o governo nunca cumpriu, segundo Kátia. Até que no dia 28 de fevereiro deste ano, o juiz José Denilson Branco determinou a prisão do secretário executivo do Ministério da Saúde por três meses ou até que o remédio fosse entregue.
Em menos de 24 horas, Renato recebeu um telefonema. Era um representante do governo que informava que as primeiras doses seriam entregues e, depois de um ano, Gianlucca poderia, finalmente, começar o tratamento.
“Ele, com certeza, vai ter uma vida nova porque com o remédio para a progressão da doença e com os tratamentos alternativos que ele faz, com fisioterapeuta e fonoaudióloga, ele vai começar a ter uma evolução”, explica o pai da criança.
Outras famílias com o mesmo problema
A história começa a ter uma final feliz para a família Trevellin, mas outras continuam esperando que a Justiça decida pela compra do Spinraza.
Ellem Cristina Camargo Geraldo, 27, é mãe da Isadora, que tem 1 ano e luta contra a AME desde os 3 meses de vida. Ellem e o marido, o auxiliar de almoxarifado Paulo Henrique de Souza Rodrigues, vivem no interior do Paraná, em uma cidade chamada Jaguapitã e conseguiram uma liminar favorável no ano passado.
De acordo com a decisão da Justiça, o estado tinha até o dia 16 de janeiro para comprar as primeiras doses do Spinraza, mas até agora a decisão não foi cumprida.
Enquanto espera, Ellem precisa lidar com a angústia e o medo de que a filha piore. “Eu me sinto incapaz em ver que minha filha precisa de um remédio que não podemos dar pra ela. A AME é uma doença muito traiçoeira. No mesmo instante que ela está bem, ela pode piorar. Peço a Deus todos os dias para que este remédio possa sair logo porque quanto mais o tempo passa, é pior para a Isa”, conta Ellem.
Em nota, a Secretaria Estadual de Saúde do Paraná informou que o processo da Isadora está em fase de aquisição do medicamento. Ainda de acordo com a nota, o governo do Paraná solicitou à Justiça um prazo para a compra para que o remédio seja importado.
A advogada Weila Freitas Quintiliano, 35, conhece muito bem esse sentimento. Ela é mãe do Daniel, 4, que convive com a AME desde os primeiros meses de vida.
Ela também já conseguiu uma decisão favorável na Justiça Federal. A liminar foi publicada no dia 5 de fevereiro e o Ministério da Saúde foi comunicado no mesmo dia. A decisão prevê uma multa de R$ 1.000 por dia de atraso.
A união recorreu e, até o momento, Daniel continua sem o remédio.
“A doença é degenerativa, então um minuto é muito tempo. E a gente vê que a justiça decide, o ministério entra com recurso, parece que ficam tentando ganhar tempo. Parece que o objetivo é que as crianças vão falecendo para eles não precisarem fornecer a medicação”, lamenta Weila.
Em nota, o Ministério da Saúde disse que o processo está em análise técnica e afirmou que "estão sendo tomadas todas as providências para resolver o caso".
Ministério da Saúde x pacientes com doenças raras
O Spinraza ainda não foi incorporado ao SUS, por isso, as famílias que precisam fazer o tratamento têm que entrar na Justiça para que o Ministério da Saúde forneça o medicamento.
Mas, muitos daqueles remédios que já fazem parte da lista de distribuição do Sistema Único de Saúde e que deveriam estar disponíveis para pacientes cadastrados com indicação de tratamento, estão em falta há meses.
No dia 4 de março, pacientes com as chamadas doenças raras fizeram uma caminhada no Rio de Janeiro, junto com amigos e familiares, para protestar contra a falta desses remédios. As doenças raras trazem elevado risco de morte e são cronicamente debilitantes.
Sem o tratamento, ao menos 15 pessoas morreram nos últimos meses, de acordo com a Associação dos Familiares, Amigos e Portadores de Doenças Graves e Raras (Afag).
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De acordo o Ministério da Saúde, a pausa no fornecimento de remédios de alto custo para pacientes com doenças raras se deve a um problema jurídico.
Uma resolução da diretoria da agência reguladora, a Anvisa, proíbe distribuidoras que não tenham o registro do laboratório produtor de comercializar seus medicamentos Brasil. O laboratório, por sua vez, apenas autoriza a entrega por um único distribuidor indicado por ela. As distribuidoras que venceram a licitação para importar os medicamentos Soliris, Fabrazyme, Myosyme e Aldurazyme não possuem esse registro.
“As empresas que venceram o edital para vender os remédios não têm o direito de importá-los, porque não detêm o registro. Só o detentor dos registros pode importar os medicamentos. Esse detentor disse que faz o preço mais barato, mas já havia sido realizado o edital”, afirmou Ricardo Barros, ministro da saúde.
O advogado Gustavo Morais, especialista em direito regulatório e professor da Fundação Getúlio Vargas, explica que de acordo com as regras da Anvisa, conseguir este registro não é fácil. É preciso ser capaz de atestar a segurança e eficácia do produto, além de conseguir se adequar ao preço do medicamento, que no Brasil é regulamentado pela Cmed, a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos.
Quem possui esse registro vai ser o responsável pelo produto no Brasil.
“São produtos delicados, que podem apresentar um defeito se não forem transportados da forma correta, na temperatura ideal. Se o medicamento causar qualquer problema, é o importador e distribuidor registrado que vai responder. Por isso a Anvisa não permite que um importador sem registro faça esse transporte”, explica Gustavo Morais
O Ministério da Saúde não deu um prazo para que o problema seja resolvido. As distribuidoras que venceram a licitação entraram na Justiça para garantir o direito de entregar os medicamentos. Ricardo Barros discorda que esse registro seja dado apenas para um distribuidor. "Não concordamos com essa manutenção do monopólio. Vai ter desabastecimento dos remédios se não conseguirmos isso”, defendeu o ministro.
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