Oito a cada dez casos de violência contra crianças atendidos pelo SUS ocorreram em casa
No ano em que a lei Menino Bernardo completa uma década, relatório do Ministério da Saúde destaca papel das instituições no combate à violência
Saúde|Jéssica Gotlib, do R7, em Brasília
A violência contra crianças ainda é um grave problema de saúde pública no Brasil e é praticada, principalmente, dentro da própria casa delas por pais, mães, padrastos ou madrastas. É o que mostra o estudo “Saúde Brasil 2023 - Análise da situação de saúde com enfoque nas crianças brasileiras”, publicado pelo Ministério da Saúde. Segundo dados do relatório, 84% dos casos atendidos na APS (Atenção Primária à Saúde) foram no local de residência das crianças. O índice é parecido quando observadas as ocorrências registradas na Atenção Hospitalar, Urgência e Emergência: 72%.
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O estudo foi realizado com os dados das notificações de violência interpessoal contra crianças, com idade entre 0 e 9 anos, registrados no Sinan (Sistema de Informação de Agravos e Notificação), no Brasil, de 2015 a 2021. Em todo o período, foram 261.341 casos notificados, sendo 204.477 (78,7%) em serviços de urgência e emergência e 56.864 (21,8%) nos serviços da Atenção Primária à Saúde.
A principal violência foi a negligência, que representou 39,5% e 55% das notificações da Atenção Primária e da Atenção Hospitalar, respectivamente. O documento foi publicado em 11 de junho deste ano e tem outros capítulos dedicados a diferentes aspectos da saúde das crianças brasileiras. No texto, os pesquisadores concluem que é preciso melhorar os instrumentos de rastreamento e notificação da violência contra crianças nas unidades de atenção básica, “a fim de evitar que casos com maior gravidade ocorram”.
O documento também destaca outros pontos de atenção: como a possível subnotificação dos casos durante o período de pandemia; especialmente na atenção básica; a prevalência de agressores próximos à criança — sendo pais, madrasta ou padrasto responsáveis por 62,2% dos casos notificados; e o perfil das vítimas — sexo feminino (53,4%), com idade entre 1 e 4 anos (46,1%), da raça negra (56,1%), que não tinha deficiência ou transtorno (97,1%) e que residiam na zona urbana (93,0%).
No relatório, os pesquisadores destacam diferenças observadas nos dados da assistência hospitalar e nas unidades básicas. Eles dão ênfase à necessidade de reforço na notificação de casos, nesta última, para que os quadros não se agravem tanto que precisem chegar às portas das emergências e urgências. Há ainda um apontamento sobre o acesso de crianças negras e moradoras de zona rural aos serviços de saúde e da notificação de violência entre esses grupos.
Instituições brasileiras têm o dever de notificar casos de violência
Ouvida pelo R7, a advogada Mariana Zan, do Instituto Alana, explica que as instituições têm papel fundamental no combate aos diversos tipos de violência, incluindo contra crianças e adolescentes. “É importante trazer que a lei 13431, de 2017, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Constituição Federal e a Resolução 113 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, o Conanda, estabelece o que a gente chama de sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes, reconhecendo que um único serviço ou uma única instituição é não dá conta por si, de lidar com o fenômeno tão complexo como as violências contra as crianças e adolescentes”, explica.
Neste ano, uma das principais normas a tratar especificamente do tema em relação à menores de idade completa dez anos. A Lei Menino Bernardo, também conhecida como Lei da Palmada, prevê que as crianças brasileiras “têm o direito de ser educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto”. Aprovada em 2014, ela estabelece desde o encaminhamento da família a programas de proteção, orientação e tratamento psicológico até advertências aos responsáveis.
Aprovada em 2022, a Lei Henry Borel complementa o quadro normativo com medidas de proteção mais incisivas em relação às crianças vítimas ou testemunhas de violência. A norma espelha as medidas previstas para mulheres pela Lei Maria da Penha, com adoção de medidas protetivas, procedimentos policiais e legais e de assistência médica e social no caso de risco às vítimas.
Mariana Zan argumenta que, para que nossas leis de proteção à criança e ao adolescente tenham efeito, é preciso que os profissionais de todos os órgãos públicos trabalhem de forma articulada para sinalizar qualquer tipo de agressão, física ou psicológica. “Reconhecendo que somente um trabalho em rede, um trabalho bem articulado, um trabalho bem é estabelecido com fluxos estabelecidos, com profissionais capacitados para lidar com o fenômeno da violência contra crianças e adolescentes, que é capaz de combater e de prevenir violências contra crianças e adolescentes”, diz.