Vítima de violência na pandemia teme 'morrer dentro e fora de casa'
Psicóloga afirma que todos os sentimentos são intensificados na quarentena e relata o caso de 4 pacientes que foram agredidas pela 1ª vez no confinamento
Saúde|Brenda Marques, do R7
"São pessoas independentes, as quatro trabalham. O que pega é a culpa. O fato de achar que tem que ajudar o outro".
É assim que a psicóloga Adriana Severine, especialista em terapia cognitivo-comportamental, descreve suasquatro pacientes que foram agredidas fisicamente por seus maridos durante a quarentena.
Todas elas sofreram a violência doméstica pela primeira vez. E disseram para Adriana a mesma frase: "Nunca achei que ele fosse me bater".
Todas também foram à delegacia para denunciar o crime, mas duas acabaram desistindo de seguir com o processo - e continuam vivendo sob o mesmo teto que o agressor.
Essas mulheres são exemplos reais do que mostram as estatísticas: as queixas de violência doméstica por telefone aumentaram 17,97% nos nove dias seguintes à data em que o confinamento entrou em vigor em vários estados, segundo dados do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos.
Culpa e medo mais intensos
Todos os sentimentos se intensificam durante o confinamento imposto por uma pandemia, afirma Adriana. Culpa e medo são os que se tornam mais fortes para uma mulher que é vítima de agressão nessa circustância, de acordo com a especialista.
"A vítima sempre acha que ela é culpada [pela agressão], por mais que o violência não tenha nenhum sentido. E com a quarentena isso fica mais exacerbado", ressalta.
Situações corriqueiras - como atrasar o almoço e deixar o volume da televisão alto - já bastam para que o homem agrida a mulher. E, diante disso, ela se sente ainda mais culpada pela violência que sofreu.
Adriana observa que conviver o dia inteiro torna a violência doméstica ainda mais frequente. "Antes, o agressor tinha outras coisas para fazer. Agora não. Então, ele desconta na vítima toda frustração que ele vive, porque ele também acha que a culpa é dela", afirma.
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A psicóloga compara a situação de opressão vivida por essas mulheres durante a quarentena a um cativeiro repleto de medo e incerteza que as deixa acuadas.
"Ela tem medo de morrer fora de casa e dentro de casa. O coronavírus funciona como um guarda do cativeiro. A mulher não pode sair por causa do vírus e em casa o abusador, muitas vezes, usa essa situação para exercer controle", explica.
"O medo aumenta porque de repente ela ficou desempregada, não tem para onde ir e não sabe o que vai acontecer durante a pandemia", acrescenta.
A falta de apoio da família tornou a situação ainda mais difícil para as pacientes de Adriana. "Todas elas conversaram com familiares. As duas que resolveram se separar ouviram coisas do tipo: 'ah, você podia ter tentado mais um pouco'", conta.
Comprometimento moral
Além do medo e da culpa, a ideia de comprometimento também é uma barreira para que a mulher consiga se livrar de seu algoz, principalmente em um contexto de crise como esse, que afeta a vida individual e coletiva.
"Quem sofre violência física e psicológica tem medo de ficar sozinha. Mas também tem uma ideia que diz 'eu me comprometi com essa pessoa para situações boas e ruins. Agora que estamos indo mal, eu não posso abandoná-lo'. Ou seja, ela tem um comprometimento moral muito grande com essa pessoa", esclarece Adriana.
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Achar que tem o dever de cuidar e ajudar o marido com todos os problemas também é outra característica comum entre as mulheres que vivem um relacionamento abusivo.
"A mulher sempre toma para ela essa responsabilidade de cuidar. Ela se propõe a ajudá-lo a não beber ou ficar nervoso. E aí, quando as coisas não acontecem como o esperado, a culpa aumenta novamente", analisa.
Gatilho para agressores
Ela destaca que o confinamento não cria agressores. Essa situação é apenas um gatilho que faz com que o perfil violento do indivíduo venha à tona. "Era uma bomba prestes a explodir. Mas explodiu mais cedo. Já era um agressor que estava ali esperando para aparecer", define.
"Quando você começa a ver o relacionamento desde o começo, você percebe traços que já existiam antes, como o abuso psicológico. Podem ser até coisas pequenas que vão se intensificando", destaca a psicóloga.
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A especialista descreve o homem que comete violência contra a mulher como uma pessoa insegura. De acordo com ela, todas as inseguranças também aumentaram por conta do momento vivido e ele faz da agressão à vítima uma "válvula de escape".
"O agressor é inseguro, tanto que ele bate em uma pessoa mais fraca. Então, ele agride a mulher para recuperar essa falsa sensação de segurança", avalia. "O problema é com ele, e não com a vítima. O modo como ele se relaciona é baseado na agressividade e em exercer o controle pelo medo", enfatiza.
Denúncia por aplicativo
Adriana aconselha que toda mulher vítima de violência denuncie o crime e, se possível, saia de casa. "Pense primeiro na sua vida, tenha sua segurança garantida", alerta.
Desde o começo de abril, é possível denunciar casos de violência contra a mulher e de outras violações de direitos humanos por meio do aplicativo Direitos Humanos Brasil, que pode ser baixado em tablets e smartphones.
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O Ligue 180 (Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência) funciona 24 horas por dia, inclusive aos finais de semana e feriados.