Polícia no banco dos réus: o desafio de punir quem deve investigar
Mortes de Ana Paula e Rogério em 2006 mostram a estrutura que leva à impunidade de policiais
Cidades|Mariana Queen Nwabasili, do R7
As dificuldades em se investigar e em se achar testemunhas dispostas a depor contra os policiais que participaram dos assassinatos após a onda de ataques do PCC em São Paulo, em maio de 2006, fazem parte de um emaranhado de problemas associados à omissão das polícias investigativas e do próprio Poder Judiciário.
O desenrolar das investigações dos assassinatos de Ana Paula e Rogério são exemplo de uma estrutura que leva à impunidade de policiais que cometem crimes. Mais de oito anos após os assassinatos, as famílias dessas duas vítimas — entre outras tantas — não têm ao menos indícios dos culpados pelos crimes, porque os inquéritos foram arquivados.
Os pedidos de arquivamento (veja imagem ao lado) redigidos por promotores do Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado) do Ministério Público de Santos expõem as limitações das investigações que são contestadas pelas mães das vítimas e defensores públicos.
Onda de ataques de 2006 deixa para trás mais de 400 casos de impunidade
Gari é assassinado na rua que varreu poucas horas antes
Nessas situações, por mais injustiçados que os familiares se sintam, não há o que fazer. A lei estabelece que civis não podem recorrer da decisão de arquivamento. A reportagem procurou o promotor Cássio Conserino, que trabalhou seis anos no Gaeco de Santos e esteve à frente dos casos de 2006 antes de ser, em 2012, transferido para o MP da cidade de São Paulo, porém ele não quis se manifestar.
O R7 entrou, então, em contato com a assessoria de imprensa do MP de São Paulo, pedindo entrevista com os procuradores que trabalham atualmente no Gaeco de Santos. O departamento afirmou ter encaminhado os questionamentos ao órgão, entretanto, até o fechamento desta reportagem, não foram dadas respostas a nenhuma das perguntas enviadas nem explicadas as justificativas para o arquivamento dos inquéritos.
Mães de Maio
Sem o respaldo da polícia e nem da Justiça, um grupo de mães de civis assassinados em 2006 se juntou e formou o Mães de Maio. O movimento cobra justiça e a condenação dos executores em mobilizações políticas e investigações feitas pelos próprios familiares.
Ainda em 2006, o grupo inicial do movimento procurou a Defensoria Pública de Santos, criada naquele mesmo ano. Foi por meio do órgão e da assistência jurídica do defensor público Antonio Maffezolli que as mães conseguiram ter acesso às cópias dos inquéritos.
Maffezolli faz diversas críticas sobre os argumentos apresentados pela promotoria para realizar os engavetamentos. Ele também questiona as investigações, afirmando que falhas de procedimento influenciaram as conclusões que constam nos pedidos de arquivamento.
Confira o especial que traça um raio-x da impunidade no Brasil: Invisíveis
No caso de Rogério, o defensor lista as seguintes falhas investigativas: ausência do laudo de perícia no local do crime; não obtenção das gravações das câmeras do posto; ausência de depoimento de Ricardo (amigo de Rogério e testemunha presencial); não conservação e falta de perícia em prova material (moto) e não obtenção e perícia do projétil de arma de fogo que ficou alojado na coluna do gari.
Quanto ao caso de Ana Paula e Joey, o defensor aponta falhas nos inquéritos, como: ausência do laudo de perícia no local do crime; ausência de conexão entre as mortes de Ana Paula Gonzaga Dos Santos, Eddie Joey Oliveira e o vigia do posto, João Góes [que teria presenciado as execuções de dentro do estabelecimento]; a ausência de conexão entre as mortes de Ana Paula Gonzaga Dos Santos, Eddie Joey Oliveira e os atentados que sofreram jovens que estiveram presentes no velório e a ausência de depoimento dos amigos que conseguiram escapar do atentado.
De acordo com Maffezzoli, as investigações e levantamentos de provas poderiam ter sido melhores se tivessem sido feitas conjuntamente.
— Não foram nem comparados os casos da época para saber, por exemplo, se as mortes eram causadas pelas mesmas armas. Então você tem vícios na origem das investigações que prejudicam o andamento.
O distanciamento de tempo para o início da investigação também é mencionado como um grave problema. Para que se tenha ideia, o depoimento do frentista do posto de gasolina em que Rogério foi abordado foi colhido pela primeira vez somente no dia 12 de março de 2008, quase dois anos após o homicídio.
Limites do judiciário
Daniela Skromov de Albuquerque é defensora pública e coordenadora auxiliar do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Uma das suas funções no Núcleo é auxiliar familiares de vítimas de homicídios envolvendo policiais.
Ela avalia que até mesmo princípios técnicos do direito interferem no julgamento de policiais. É o caso do "in dubio pro reo", princípio legal que estabelece que, na dúvida, acusações não devem ser feitas pelo Ministério Público, a não ser que se tenha um mínimo de provas materiais contra os acusados.
— Como, em geral, você tem poucas provas por ineficiência da perícia e das investigações, geralmente é dito que a denúncia não pode ser feita, porque há indícios insuficientes de autoria e materialidade. Só que esse princípio também é usado seletivamente. Às vezes, quando o réu não é um agente do Estado, com quase nada de prova você acusa. Aí, normalmente, quem é acusado na Justiça criminal é o pobre, o suspeito genérico, a pessoa descartável, os negros. E é essa população que, coincidentemente, é a mais atingida pela letalidade policial.
Especialistas também destacam um possível comprometimento entre o MP e as polícias (Cvil e Militar), já que o órgão acusador, num primeiro momento ao menos, depende do trabalho dos agentes policiais para viabilizar as suas investigações.
Até mesmo a ONU (Organização das Nações Unidas) já fez recomendações ao Brasil sobre esse assunto. O item 82 do relatório sobre execuções sumárias no Brasil traz a seguinte proposição: "As unidades do Ministério Público deveriam dispor de um grupo de investigadores e ser encorajadas a realizar investigações independentes contra acusações de execuções sumárias. Obstáculos legais que impedem tais investigações independentes deveriam ser removidos em legislação futura".
Do lado mais criticado dessa polêmica, a promotora Soraia Bicudo Munhoz, atuante na capital paulista, relativiza a questão. Segundo ela, a sociedade imagina que o Ministério Público não tem interesse em processar os policiais, mas é que na verdade é muito difícil conseguir obter provas contra eles.
— Em raríssimos casos, quando eles [policiais acusados] cometem todos os erros, você consegue levá-los a julgamento, e nem assim, às vezes, consegue uma condenação. Com a prática corriqueira de boletins arredondados e a recolha de cápsulas do local do crime inviabilizando o confronto de armas, às vezes você não tem como provar a culpa do policial, então acaba no arquivo o inquérito. Uma suspeita não é indício para oferecer denúncia.