De modelo de estabilidade na região ao autoritarismo, premiê turco está "minando" a democracia
Turquia já foi classificada por Obama como um exemplo "importante” para o Oriente Médio
Internacional|Do R7
Há mais de 15 anos no poder na Turquia, o presidente Recep Tayyip Erdogan vem sendo criticado por aliados de longa data por conta de medidas. Há duas semanas, os Estados Unidos alertaram o governo turco sobre o perigo de “ir longe demais” ao levar à justiça os responsáveis pela tentativa de golpe militar no país. Apesar da guinada autoritária, a Turquia já foi classificada por Barack Obama de “modelo importante” para outros países muçulmanos do Oriente Médio.
Mais de 60 mil pessoas foram presas, removidas ou suspensas de suas funções por suspeitas de ligação com a tentativa de golpe desde o dia 15 de julho — incluindo funcionários do Ministério da Educação e reitores de universidades, além de milhares de membros do Judiciário e militares.
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Cientista político e professor de Relações Internacionais da Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos), Bruno Lima Rocha define o governo de Erdogan como “autoritário” mas não ditador, já que o presidente foi eleito pelo voto popular.
O especialista afirma também que existem instituições sólidas na Turquia — inclusive o partido da maioria, o AKP.
— Talvez estejamos vendo o mesmo partido e o mesmo líder, mas com uma variação de tom. Essa mudança de democrata para ditador é uma ilusão. Não era incomum um deputado sair do parlamento e ir para a cadeia. Desde sempre.
Mestrando do programa de Pós-graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP), Willian Moraes divide o governo de Erdogan na Turquia em duas fases: a primeira, entre sua eleição como primeiro-ministro em 2001 até as revoltas conhecidas como Primavera Árabe em 2010, e uma nova postura, que vem em uma escalada autoritária, a partir de 2011.
Apesar de alguns analistas afirmarem que a postura autoritária de Erdogan tem o objetivo de “islamizar” a Turquia, Moraes acredita que o objetivo do presidente é concentrar mais poder no cargo e manter a autonomia interna e externa do país, tirando os focos de resistência ao seu governo dos principais setores da sociedade turca.
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— Ele está minando alguns aspectos da democracia. O presidencialismo, da forma que ele vem mostrando, dá poder para vetar legislações e dissolver o parlamento. O golpe veio das forças armadas e ele está limpando as escolas e o judiciário.
Democracia
Criado após a queda do Império Otomano no contexto da Primeira Guerra Mundial, o estado moderno da Turquia foi fundado em 1922 por Mustafa Kemal Ataturk. Dentre os pilares estabelecidos para o país estavam o secularismo e o nacionalismo. Ao longo dos anos, os seguidores dessa corrente passaram a ser denominados kemalistas — cujos maiores defensores se concentraram no exército turco.
Segundo Willian Moraes, tendo assumido o poder pouco tempo depois do golpe militar que derrubou o primeiro-ministro Necmettin Erbakan — que adotou uma política externa “mais islâmica” —, Erdogan se tornou governante em um contexto em que os militares estavam fortalecidos, o que levou sua postura a ser mais “moderada e pragmática”.
— Ele tinha que mostrar que o islã e a democracia eram compatíveis.
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De acordo com Moraes, até 2010, o governo Erdogan definiu como prioridade se tornar membro pleno da União Europeia e uma política de “zero problemas” com os vizinhos do Oriente Médio. Essa postura fez com que o presidente fosse visto como um mediador dos problemas da região, se aproximando de todos os países, desde Israel até a Síria.
Revoltas
A partir de 2010, a primavera árabe fez com que uma onda de manifestações tomou conta de diversos países do Oriente Médio — a maioria, pedindo por uma maior abertura democrática em nações cujos regimes ditatoriais duravam anos, como no Egito e na Síria.
Na Síria, as revoltas se transformam em uma violenta guerra civil, na qual a Turquia de Erdogan apoia a posição contra o ditador Bashar Al Assad. Neste momento, Erdogan quebra com sua política de se manter neutro e passo a se aproximar dos movimentos considerados populares — o que caracteriza a virada para o segundo momento de seu governo, segundo Moraes.
— A partir de 2011, o Erdogan deixa de discutir com todos os lados, e passa a escolher um lado.
No entanto, a situação na Síria sai do controle, e Bashar Al Assad continua no poder em meio a uma sangrenta guerra civil, ao mesmo tempo em que a oposição se radicaliza.
Em 2014, surge o grupo Estado Islâmico, que rapidamente conquista um amplo território do país. Em paralelo, os povos curdos do norte da Síria — que reivindicam independência — expulsam os jihadistas e conquistam autonomia em uma ampla área na região. Para Bruno Lima Rocha, essa vitória causou temor no governo turco de que os curdos possam reivindicar mais democracia também na Turquia.
Nas eleições de 2015, o partido curdo consegue superar o quociente eleitoral e conquista cadeiras no parlamento, fazendo com que, pela primeira vez, o partido de Erdogan não consiga formar uma maioria no governo. Poucos meses depois, os conflitos contra o PKK — grupo armado curdo classificado como "terrorista" pela Turquia — voltam a se intensificar no sul do país, fortalecendo a retórica da segurança nacional de Erdogan.
— O conflito militar com os curdos estava contido. O alerta vermelho apareceu em Ancara quando eles tomaram o controle no norte da Síria, e disparou de vez quando a esquerda curda conseguiu superar o quociente eleitoral em 2015.
De acordo com Rocha, a escalada autoritária de Erdogan vem fazendo com que o país se distancie dos Estados Unidos e da Europa e se aproxime da Rússia de Putin — com quem o presidente compartilha alguma simpatia por seu estilo de governo. No entanto, o especialista não acredita que a estratégia de Erdogan seja sair da OTAN, mas sim ter “o melhor dos dois mundos”: ser membro da aliança sem o compromisso de ser um aliado.
— A Turquia tem uma projeção de estado muito forte. Como aliado da Otan, ela não consegue projetar seu próprio poder.
* Por Luis Felipe Segura