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Doceira húngara se tornou símbolo na luta contra a intolerância

Crônica fala sobre um tempo em que os doces feitos em São Paulo serviam para mostrar aos brasileiros o melhor da Hungria

Nosso Mundo|Eugenio Goussinsky, do R7

Menino já levou doce sem precisar pagar
Menino já levou doce sem precisar pagar

O gosto do mousse de chocolate permanece até hoje. Durante a semana, à tarde, eu costumava passar na doceira da Pedroso Alvarenga, do outro lado da esquina de casa.

Ir lá era um dos meus hábitos naqueles tempos sem compromissos, em meio às brincadeiras com vizinhos, às idas à papelaria ou ao mercadinho Chelmi.

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A dona do local era húngara, vinda de uma cidade do sul do país. Tinha os cabelos curtos, claros, suavemente penteados para os lados. E olhos azuis que transmitiam uma alma transparente.


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Falava sobre o sofrimento durante a guerra, quando a Hungria passou do controle nazista para o comunista. E abençoava o Brasil por ser a terra que, bem ou mal, a acolheu.

Como uma forma de retribuição, resolveu abrir a doceira, com uma sócia alemã, e apresentar para os brasileiros de São Paulo o que seu país, e ela, tinham de melhor.


Assim, seu estabelecimento foi pioneiro de receitas que muitas redes, posteriormente, adotaram. O mousse era um deles. E o petit-four com geleia era outro.

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Numa tarde, com meu amigo Denis, estávamos admirando o balcão repleto de delícias, quando a ouvimos contar um pouco sobre a história da torta de ricota que aprendera a fazer com sua vó, na casinha da cidade natal.

Disse que, muitas vezes, faziam sob o som de bombas. E que, menina ainda, teve a ideia de acrescentar uma uva passa cada vez que ouvia um estrondo. A vó adorou a ideia.

Naquele turbilhão que era a infância, me intrigava o fato dela não ser como outros adultos que não me davam atenção.

Sentia-me acolhido pelo modo como me tratava, me deixando até levar um doce sem pagar. E não foi só uma vez.

Ela e sua sócia deixavam-me ficar olhando os doces, não me davam bronca quando brincava lá dentro com meus amigos. E na despedida, ela sempre mandava um abraço para os meus pais.

Anos depois, a doceira deu lugar a um grande empreendimento imobiliário. Assim como a minha casa. Nunca mais havia tido notícias dela. Nunca mais havia experimentado doces tão saborosos.

Até que um dia soube, por minha mãe, que ela ainda estava viva e, insistente, abriu uma nova doceira na São Gabriel.

Lá fui eu, com minha esposa e minha mãe. No reencontro, recebi um abraço que me levou de volta à infância, àquelas tardes cheias de esperança. E a levou de volta a muitos de seus sonhos incompletos.

Ao chegar, vinda da guerra, ela buscava o ideal da paz no mundo, através de suas receitas. Mas a reencontrei em um mundo intolerante, inclusive com o primeiro-ministro de seu país, Viktor Orbán, encabeçando uma onda xenófoba na mesma Europa.

Quando falei das dificuldades atuais, ela, com aqueles mesmos olhos azuis se impondo sobre sua pele envelhecida, logo mostrou por que não desistia.

E de que maneira todo aquele trabalho de outrora, que tanto me marcou, tinha valido a pena. Por isso prosseguia em seu objetivo. "As coisas ainda não estão tão difíceis como naqueles tempos. O ainda é nossa chance." Então sorriu para mim, docemente.

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Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.

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