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Sócrates e Palhinha ensinaram o sentido da palavra tabela

Era um tempo em que, apesar de apreciado, o futebol ainda não estava tão na moda e não era um produto de consumo viralizado a partir dos anos 2000

Nosso Mundo|Eugenio Goussinsky, do R7

Sócrates toca de calcanhar para Palhinha em treino
Sócrates toca de calcanhar para Palhinha em treino

Desde criança a sensação era de solidão, mesmo diante dos outros. Com os amigos da escola, os rótulos se faziam necessários. O garoto era o mais engraçado, apenas isso. Mas ele queria comunicar muito mais coisas. Do que gostava realmente, além daquilo que era aceito. Por exemplo, de pessoas que não eram incluídas e que, por aparência, não podia demonstrar sua simpatia em relação a elas.

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Era um tempo em que o futebol ainda não era moda em seu meio. O jogo era apreciado, claro, mas não como o produto de consumo viralizado a partir dos anos 2000. E no futebol o menino também se sentia só, como corintiano. Já que seus amigos não ligavam tanto, era ele quem mais sentia as derrotas constantes para o Palmeiras naqueles tempos.

Poderia descrever com perfeição o cenário em que ouviu parte do jogo de 1977, sentado no bloco de pedra acima da mureta do prédio em Santos. Gol do Palmeiras. Era como se um espinho das plantas do jardim lateral o fincasse. Gol do Palmeiras. E a voz aveludada e inesquecível de Fiori Gigliotti se impregnava em sua mente com a verdade implacável: "É gol, é gol, é gol..."


Cada vez que ouvia essas descrições literárias, que o faziam imaginar as cenas no gramado, era doloroso. Aliviou-se um pouco, naquele jogo, quando Rosemiro fez um gol contra, chutando alto, ao tentar desviar na pequena área. Mas foi 4 a 2 Palmeiras, um placar que jamais apagou da memória. "Fecham-se as cortinas e termina o grande jogo", como dizia o locutor.

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Vieram outros "É gol, é gol, é gol", sempre mesclados a viagens, a visitas aos tios, a situações marcantes e marcadas por aquela sensação de tristeza que a derrota do Corinthians, o seu refúgio, lhe trazia.

As noites, após mais um dia em que pouco conversara, ficavam mais melancólicas, na véspera da segunda-feira, retorno da escola, quando ele não teria com quem compartilhar sua decepção. Não sabia se um dia teria condições de vencer aquele "Gigante Alviverde."


E naquele 12 de novembro de 1978, na cozinha que ficava nos fundos da casa de seus tios em Santo André, ele começou a sentir uma mudança. Viu o início daquele Corinthians e Palmeiras pela TV. Mas, como sempre, à sua maneira solitária, decifrando os meandros do jogo, refletindo a cada toque, buscando se reconhecer em cada jogada. E Sócrates fez 1 a 0, num golaço, chutando à queima-roupa, no ângulo. A bola entrou e saiu rapidamente.

Então vem uma pausa em suas lembranças, já adulto. E ele só se vê novamente no carro, na continuidade daquele jogo, olhando o prédio quadrado da prefeitura de Santo André, enquanto seu pai fazia o contorno da praça rumo a São Paulo. Sentia-se bem. Parecia que aquela sensação estava sendo transmitida, dele para Gigliotti e do narrador para os jogadores.

Ouviu pela primeira vez a palavra tabela, graças à dupla Sócrates (que chegara meses antes) e Palhinha (que chegara em 1976). Sócrates desarmou no meio, tocou alto para Palhinha, que, na mesma sintonia, tocou, recebeu na frente, driblou o goleiro Gilmar, esperando Sócrates se livrar de Marinho Peres, que o agarrara tentando impedir a avalanche que já se iniciara. E tocou. Sem goleiro, Sócrates fez o gol. Depois veio o terceiro, com Vaguinho. Desta vez, o "É gol, é gol , é gol", estava a favor dele.

Foi sublime. Do carro, ele, incrédulo, sinalizava para os veículos ao lado, "3 a 0, 3 a 0, no Palmeiras!!!" Só ouvia seu pai rir, satisfeito, de sua felicidade. A mãe também se contagiara e vibrou. Mas só ele sabia o caminho que acabara de desbravar. Descobriu que a tabela sempre esteve presente em sua vida. Ele é que não a usava bem.

Passou, desde então, a sempre procurar a tabela com os que não o ouviam. E a tentar encontrar seus objetivos por meio dela: onde ir, o que fazer, como entender. A sorrir mais na tabela com a escola. E com os pais, com os amigos, com os parentes, com Gigliotti, trocando sempre alguma coisa boa, por outra similar. Foi tabelando com a história que ele descobriu que o drama não era tão grande. Em 1977, afinal, o Corinthians ganhou mais do que perdeu do Palmeiras.

E mesmo assim, se todas essas tentativas de tabela, de vez em quando, não dessem certo, ele jurou não desistir. Estar sem companhia, imerso em seus pensamentos, nas salas de visita, no pátio do recreio ou no meio da multidão, passou a não importar tanto. Mesmo quando a tabela não fosse perfeita, se convenceu de que não estaria totalmente só. Estaria apenas tabelando com o universo.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.

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