Rio: "ideologia da eliminação" leva a mortes de inocentes em operações policiais
A pedido do R7, especialistas discutem mortes como a do menino Christian, morto em ação
Rio de Janeiro|Do R7
A morte de mais um inocente durante operação policial reacende o debate sobre a forma como as operações e a conduta dos agentes de segurança interferem na rotina e na vida dos moradores de comunidades do Rio de Janeiro. Christian Soares, de 13 anos, foi baleado e morto durante operação da Divisão de Homicídios, com apoio da Polícia Militar, em Manguinhos, zona norte da capital fluminense. No fim da manhã de terça-feira (8), Christian jogava bola em um campo de futebol da comunidade pacificada com outras crianças e adolescentes quando teve que correr para se proteger de um tiroteio, mas não conseguiu.
Até julho, as mortes em supostos confrontos foram 408 no Estado do Rio — aumento de 18% em relação a mesmo período de 2014, segundo o ISP (Instituto de Segurança Pública).
Assim como Christian, Patrick, Elizabeth, Eduardo, Rafael, Wanderson e Gilsonforam vítimas de trocas de tiros durante incursões policiais em áreas pobres da cidade do Rio neste ano. Para especialistas ouvidos pelo R7, a principal causa dessas mortes — ainda não esclarecidas — e de todas as outras em áreas periféricas é "a lógica de guerra" que domina a cidade.
Ricardo Balestreri, atual presidente do Observatório do Uso Legítimo da Força e ex-secretário nacional de Segurança Pública, diz acreditar que o histórico da violência gerou o sentimento na população de estar em constante guerra, além de afastar a polícia da sua real função.
— A gente criou, ao longo de 40 anos, uma cultura de embate da polícia com os bandidos. E passou a se ter uma impressão que essa é a principal função da polícia. Quando na verdade, por trás disso, há uma ideologia de guerra às drogas. Se resgatarmos a ideia de que a polícia existe para proteger a população, em especial a população pobre, essa prática muda naturalmente.
Apesar de afirmar que a orientação das academias de polícia é de fazer uso da força de maneira proporcional e progressiva, Balestreri diz que o comportamento truculento dos policiais pode ser creditado à chamada “cultura da rua”, que os orienta a darem continuidade à chamada lógica da guerra. Para o ex-secretário, a sociedade tem que estar disposta a essa mudança cultural, já que não atinge só os agentes de segurança.
— Acho que existe um setor importante da classe média brasileira que acredita na chamada ideologia da eliminação. Ela se contrapõe à ideologia da resolução. Para uma parte dessa classe, você não tem que resolver o problema, tem que eliminar o problema matando ou prendendo. Esse pensamento, além de ser condenável moralmente, é uma tendência estúpida. O crime é uma indústria, e toda indústria tem reservas, porque isso é lucrativo. Não se elimina a violência matando os criminosos. É ingênuo e desesperado, porque a classe média se desespera com a falta de segurança. Falta raciocínio.
A busca por criminosos e o uso de armamento pesado, por parte de bandidos e polícia, resulta em mortes como a de Christian. Para José Vicente da Silva Filho, coronel da reserva da Polícia Militar, mestre em psicologia social pela USP (Universidade de São Paulo) e também ex-secretário nacional de Segurança Pública, essas mortes provavelmente seriam evitadas se houvesse maior pensamento estratégico antes das operações.
— Nem sempre as operações são feitas por unidades especializadas, com trabalho prévio de inteligência. Muitas das vezes é uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) despreparada que está passando por uma viela e a situação de confronto aparece.
A alta demanda por segurança do Estado, segundo Silva Filho, faz com que policiais sejam formados mais rápido, comprometendo a qualidade do treinamento. Segundo ele, policiais jovens e mal treinados saem às ruas com medo. Excessos também partem daí. Para o especialista, uma forma de frear as mortes é acompanhar o policial envolvido em situação de morte durante operações.
— A Secretaria de Segurança precisa designar uma comissão de estudo de letalidade policial para fazer a análise técnica sobre o policial que matou, mesmo num confronto legal. Saber se ele estava preparado, onde ele foi preparado, quem era o chefe, qual foi o tempo de treinamento e quais os problemas anteriores dele.
Em nota, a Polícia Militar do Rio de Janeiro informou que “a diminuição da letalidade violenta no Rio de Janeiro é o principal fator para que um policial seja premiado no Sistema Integrado de Metas da Secretaria de Segurança”.
Silva Filho também acredita que falta à corporação maior conscientização sobre a importância da vida dos inocentes.
— Um dos critérios para desenvolver uma operação é ter informação suficiente para mostrar o grau de risco a que as pessoas serão expostas na operação. Se houver um risco médio de atingir, é melhor não fazer. A vida dos inocentes é muito mais preciosa que qualquer êxito em capturar ou matar bandido. Se a polícia não entender isso, não entendeu seu papel.
A avó de Christian, segundo a ONG Rio de Paz, afirmou que a maior indignação dos moradores de Manguinhos é com a falta de aviso por parte das forças de segurança sobre a realização da operação que resultou na morte do neto. E em plena luz do dia.
Na quarta-feira (9), a Anistia Internacional questionou as autoridades públicas do Estado do Rio de Janeiro sobre providências para cessar operações policiais que terminam em mortes nas favelas. Átila Roque, diretor-executivo da organização, diz acreditar que falta à polícia análise do território em que se pretende realizar operações policiais.
— Não importa se a bala veio ou não da arma do policial. O fato é que se faz uma operação com essas características, em uma comunidade densamente povoada, em um horário desse, é quase inevitável que não tenha vítimas. E foi o que aconteceu. Trata-se a favela como se fosse um território sem direitos, que todos são inimigos e sujeitos a serem mortos. Como se pudessem ser mortos.
Roque também acredita que a lógica de guerra é culpada, mas cita a banalização da vida e do território periférico.
— A banalização da execução, da morte, faz parte dessa lógica de guerra. São operações feitas para satisfazer a vontade da sociedade e do Estado de mostrar serviço e para que as pessoas sejam retiradas do caminho. É como se houvesse um consenso que essas vidas são descartáveis, quando nenhuma vida é descartável, seja morador da Lagoa, do Leblon, da Maré ou policial.
Uma maior preocupação por parte do governo com moradores de comunidades também é defendida por Silva Filho. Para ele, a ação que resulta em morte não pode ser banalizada.
— A condição pregressa do indivíduo não justifica ele ter sido morto pela polícia. O governo aceita como se fosse natural, mas não é natural. Nós vimos grande consternação do mundo inteiro com a criança morta na praia. Será que falta um adolescente desse morto na capa da revista para as pessoas acordarem também?
Para alguns, a condição pregressa de Christian era questionável. A avó dele informou que, com uma infância turbulenta, ele saiu da escola e se envolveu com roubo em praias da zona sul. Os pequenos delitos fizeram com que ele acumulasse duas anotações criminais por roubo e duas por furto. Segundo a Rio de Paz, Christian fazia malabarismo em sinal de trânsito para ganhar algumas moedas. Órfão de pai aos quatro anos de idade, o menino dividia um único cômodo com a mãe e o irmão de dez anos.
A Polícia Civil informou que as circunstâncias da morte do menino são investigadas. Armas de policiais envolvidos na ocorrência foram recolhidas para confronto balístico. A perícia de local foi realizada e familiares estão prestando depoimento.
Questionada sobre a condução de operações policiais, a PM também afirmou que “a maioria das recomendações feitas pela Anistia Internacional já é adotada em nosso Estado” e apontou a criação do Centro de Formação de Uso Progressivo da Força e da Divisão de Homicídios como exemplos. Procurada pelo R7, a Secretaria de Estado de Segurança preferiu não se pronunciar, indicando a PM e a Polícia Pacificadora — que também não se manifestou — como porta-vozes.
Lola Ferreira, do R7 Rio