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"A banalidade com que a violência na USP tem sido tratada é chocante", diz promotora do caso

Após audiência sobre violações na Faculdade de Medicina, outras vítimas procuraram o MP

São Paulo|Ana Cláudia Barros, do R7

Participação de mulheres durante o Show Medicina é vetada
Participação de mulheres durante o Show Medicina é vetada Participação de mulheres durante o Show Medicina é vetada

Há dois meses, quando recebeu uma série de denúncias sobre violências praticadas na FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), a promotora de Justiça de Direitos Humanos e Inclusão Social do Ministério Público Estadual, Paula Figueiredo, ficou surpresa com a dimensão do problema. Ao ouvir relatos de que as agressões não eram pontuais, mas reiteradas e institucionalizadas, a promotora percebeu que havia urgência na implementação de mudanças naquele ambiente. A situação foi exposta publicamente na semana passada, durante audiência realizada pela Comissão de Direitos Humanos da Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo).

Por entender que a questão afeta não só os alunos da instituição de ensino, mas também a sociedade, Paula instaurou um inquérito civil, que tem caráter investigatório.

— A banalidade com que a violência tem sido tratada (na USP) é chocante.

Ela informou que, após a audiência, outras vítimas se sentiram encorajadas e procuraram a promotoria. Nesta quarta-feira (19), ela se reúne com representantes da comissão formada dentro da faculdade para apurar denúncias de violência na instituição. O grupo foi presidido pelo professor Paulo Saldiva, que, um dia após os relatos de alunos na Assembleia Legislativa, pediu afastamento da universidade.

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Assista ao vídeo que mostra universitário sendo agredido por ser contra castigo físico:

Em entrevista ao R7, a representante do Ministério Público explicou que, após a etapa de captação de provas e de apuração, pretende buscar o diálogo com a faculdade, via que considera "mais rápida, justa e eficiente". Uma das opções preferidas da promotora é a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta, meio extrajudicial de solução de conflito. Neste caso, as partes envolvidas assinariam um acordo e, na hipótese de um dos lados não cumprir o que se comprometeu, o Judiciário entra em cena.

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— A ideia é trabalhar o ambiente na faculdade, buscar soluções internas. É importante, de um lado, reforçar a formação humanística desses alunos. A LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) fala que a educação não é só a transferência de conhecimento técnico. É a formação do cidadão. De outro lado, reforçar também os mecanismos de apuração e de apoio à vítima. Que seja dada uma resposta efetiva e firme, que a vítima seja acolhida e o eventual agressor responsabilizado.

Leia os principais trechos da entrevista da promotora ao R7:

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R7 — Durante a audiência pública na Assembleia Legislativa, a senhora comentou que, há dois meses, havia recebido uma compilação de denúncias ligadas à FMUSP. Como se deu isso?

Paula Figueiredo — Era uma pessoa que veio aqui, anonimamente, mas ela relatou uma série de casos, tanto de violência sexual, de homofobia, de violências em geral contra os novatos, de práticas violentas na faculdade. Esta pessoa veio demonstrando e relatando uma cultura de violência, de opressão. Isso fez com que eu instaurasse um inquérito civil.

As questões pontualmente analisadas [como as denúncias de violência sexual] têm um viés criminal e que nem me diz respeito. Aqui, em São Paulo, temos uma atuação bastante segmentada. Eu atuo na área de direitos humanos. Nem posso apurar a questão individual, mas a reiteração dos diversos tipos de violência deixou muito claro que havia essa cultura de violência, de exclusão e é isso que pretendi trabalhar com a instauração do inquérito civil.

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R7 — Então, com base nessas denúncias, a senhora concluiu que não se tratavam de casos pontuais.

PF — Foi justamente por isso que instaurei o inquérito civil. O inquérito civil é um instrumento investigatório que serve para apurar questões de caráter transindividual, questões que afetam toda coletividade. Entendi que a existência de uma cultura opressora dentro da Faculdade de Medicina da USP, ela, sim seria um caso de relevância para toda a sociedade, não só para os alunos daquela instituição, que vivem esse tipo de opressão, que são vítimas de violências constantes, mas para a sociedade como um todo, porque é a formação dos médicos que teremos no futuro, é o dinheiro público que vai para essa universidade. Então, com certeza, há o interesse em reverter essa cultura.

R7 —Os casos de violência sexual irão para esfera criminal. Quantos casos foram relatados para a senhora?

PF — A pessoa que veio, em um primeiro momento, falou que havia recebido informações de oito casos de estupros nos últimos anos. Ela me narrou especificamente um deles e me indicou outras vítimas e testemunhas. As outras vítimas e testemunhas que vieram também chegaram a narrar um ou outro caso. Todos mencionaram outros casos, que não foram pormenorizados. Foram falados de maneira mais genérica.

R7 Os casos de violência sexual teriam ocorrido em festas da Faculdade de Medicina?

PF — Elas narram que em festas e na própria faculdade. Uma das mulheres que falaram durante a audiência pública [realizada pela Comissão de Direitos Humanos da Alesp], relatou dois estupros: um durante uma festa e outro dentro da faculdade.

R7 — Há dois meses, a senhora recebeu as denúncias. Como a diretoria da faculdade se portou quando foi comunicada sobre os casos pelo MP na época?

PF — Assim que tomei conhecimento das denúncias, instaurei o inquérito civil, e de plano, oficiei a diretoria, solicitando três informações básicas. A primeira: que a faculdade encaminhasse todas as notícias que a diretoria tivesse recebido nos últimos cinco anos de violências, tanto sexuais quanto discriminação, e encaminhasse cópias integrais dos processos administrativos instaurados e as conclusões que a diretoria havia chegado em cada caso. Também solicitei que me encaminhasse a grade curricular de humanística desses alunos, informando o inteiro teor das matérias, horas de aulas dadas, para analisar como está a formação humanística na faculdade. Solicitei ainda que me informasse quais são os mecanismos existentes na instituição para receber informações de violência e apurar os fatos narrados. Informações, especificamente, também sobre a comissão que tinha se formado dentro da faculdade.

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R7 — Quando esta comissão foi formada exatamente? A senhora recebeu as respostas da faculdade?

PF — Esse tipo de informação mais detalhada, eu até gostaria que a faculdade me passasse, porque recebi pelas vítimas que vieram ao Ministério Público, que havia uma comissão de professores com o intuito de apurar esse tipo de violência. Então, encaminhei esse ofício à universidade e não obtive resposta. Na semana passada, foi realizada a audiência pública na Assembleia Legislativa. Na audiência, eles também não compareceram. No dia seguinte, recebi contato da diretoria, que solicitou prazo de 15 dias para separar a documentação e me enviar. Eu deferi essa solicitação, e eles também se colocaram à disposição para eventuais reuniões.

R7 —A senhora acha que o fato de o problema ter sido exposto em audiência pública acelerou o processo?

PF — Exatamente. A audiência pública escancarou essa realidade existente na faculdade e parece que, diante da atitude corajosa dos alunos, que foram publicamente contar as graves violências sofridas, a diretoria não tinha mais como se manter em silêncio.

R7 — Representantes do Show Medicina, citados como agressores na audiência pública, colocaram-se à disposição da Promotoria, mas recuaram?

PF — A gente recebeu uma ligação de alunos que se diziam representantes do Show Medicina e solicitaram uma conversa comigo. Naturalmente, abri um espaço na agenda. Na sexta-feira (14), era para a gente ter uma audiência e conversar. No mesmo dia, eles fizeram novo contato, informando que tinham sido orientados a não conversar com o Ministério Público.

R7 — Eles falaram por quem foram orientados?

PF — A funcionária que recebeu a informação perguntou quem teria dado essa orientação, até para que ela certificasse nos autos, porque é uma informação relevante, mas eles não disseram. Então, na sexta-feira, determinei que tanto os representantes do Show Medicina quanto os da Atlética [Associação Atlética Acadêmica Oswaldo Cruz] fossem chamados ao Ministério Público. Neste caso, é uma convocação. Eles não têm a opção de vir ou não. Eles têm obrigação legal de comparecer. Solicitei também que trouxessem uma série de documentações relativas tanto à Atlética quanto ao Show Medicina. Documento de constituição de cada uma das entidades, as autorizações que tiveram para realizar as festas, os contratos formulados nos últimos cinco anos com diferentes empresas para fazer essas festas [...] De onde vem o dinheiro para subsidiar esse tipo de festa? O lucro é revertido com que tipo de finalidade? A ideia é saber se é verba da universidade ou não, esse tipo de análise. Eles ainda estão sendo oficiados formalmente.

R7 — Qual foi a percepção da senhora, que atua na área de direitos humanos, quando teve acesso às denúncias? Chegou a te surpreender?

PF — Surpreendeu justamente por não serem questões pontuais de agressão, mas por estarem ocorrendo de forma reiterada e institucionalizada e pela questão da revitimização. Isto é muito chocante. É muito triste imaginar que a pessoa sofre uma violência grave, como é o caso de uma violência sexual ou uma discriminação, e quando tenta buscar auxílio, fazer justiça, ela sofre outro tipo de violência: moral, psicológica para que não traga à tona. Então, ela é revitimizada. Ela sofre pela violência em si, pela reiteração, e pela ridicularização. Uma aluna mencionou na audiência pública que foi estuprada e, depois, na faculdade mesmo, criaram uma musiquinha: “Estupro, sim, o que é que tem? Se puder, estupro você também”. Algo do gênero. Uma coisa tão forte que é ser estuprada e depois disso tudo, a pessoa ainda é objeto de chacota. A banalidade com que a violência tem sido tratada é chocante.

R7 — Qual é o próximo passo da promotoria, além de ouvir os alunos envolvidos?

PF — Além dos alunos, vamos falar com outras vítimas que ainda não foram ouvidas e surgiram depois da audiência. Algumas pessoas procuraram o Ministério Público, solicitando espaço para falar também.

R7 — Quer dizer que, após a audiência, outras vítimas apareceram?

PF — As pessoas se sentiram encorajadas. Vou continuar a ouvir as vítimas, as partes envolvidas, mas a gente já tem uma reunião marcada com a comissão formada por professores da USP nesta quarta-feira (19).

R7 — Qual é a meta do Ministério Público neste caso?

PF — Implementar mudanças. Isso vai ter que acontecer. Espero que com apoio da faculdade, com abertura da diretoria. Se não for possível, infelizmente, teremos que recorrer às vias judiciais. Mas meu objetivo é realmente tentar negociar isso extrajudicialmente, porque acho que fica mais democrático do que ter uma resposta imposta por um juiz, construirmos isso com as partes que integram aquele ambiente.

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