Julgamento do Carandiru traz “tensão extra” aos jurados, avaliam especialistas
Em dez dias, júri chegou a ser adiado e foi suspenso após jurados passarem mal
São Paulo|Ana Ignacio, do R7
Mais de 20 anos depois, um desfecho se aproxima. Em outubro de 1992, 111 presos foram mortos após operação policial no Complexo Penitenciário do Carandiru. Conhecido como massacre do Carandiru, 26 policiais militares acusados de participação no episódio se sentam no banco dos réus para serem julgados.
Porém, no dia 8 de abril deste ano, data marcada para o início do julgamento, o júri não pôde prosseguir. Uma jurada passou mal e o Conselho de Sentença, formado por sete pessoas, foi dissolvido e o julgamento foi remarcado para a segunda-feira seguinte (15).
Reiniciado no início desta semana, após dois dias de trabalhos e depoimento de mais de dez testemunhas, um dos jurados apresentou um mal-estar na manhã de quarta-feira (17) e o julgamento chegou a ser suspenso por mais de um dia para recuperação dele. Até a tarde de quinta-feira (18), a possibilidade de dissolver o Conselho de Sentença não estava descartada. Somente após uma nova avaliação médica e a liberação do jurado o julgamento pôde ser retomado.
Roberto Livianu, promotor de Justiça criminal em São Paulo e doutor em direito penal pela USP (Universidade de São Paulo) diz que a dissolução do Conselho de Sentença, como ocorreu no caso do Carandiru, não é comum. Para ele, as peculiaridades do episódio podem ter influenciado o estado de saúde dos jurados.
— É um caso que não é comum. É um caso emblemático, histórico, importante, e as pessoas que compõem o corpo de sentença devem ter uma tensão extra. O assunto gera uma pressão emocional.
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Livianu explica que os jurados não são acostumados a lidar com situações como essa.
— São seres humanos que não têm a mesma compreensão, visão, a mesma tranquilidade para lidar com essa situação que os profissionais que atuam na esfera do direito. Acho que a somatória dos elementos deste caso é singular significativa.
Desconforto
O advogado criminalista Leonardo Pantaleão concorda que o caso é peculiar e que isso afeta os jurados. Segundo Pantaleão, algumas informações e fotos contidas no processo e disponibilizadas para os jurados podem causar desconforto.
— É um caso extremamente desgastante. Os jurados são pessoas do povo, leigas e têm que ver fotografias, têm que lidar com a emoção dos depoimentos, aquele ambiente da sala de júri é um ambiente mais carregado e pode acontecer de um jurado realmente se sentir mal.
Jurado doente pode cancelar julgamento de massacre do Carandiru
Além do peso de julgar casos com a complexidade do massacre do Carandiru, Ana Lúcia Pastore, antropóloga social e pesquisadora do NEV (Núcleo de Estudos da Violência) da USP (Universidade de São Paulo), lembra também que as condições a que os jurados são submetidos podem afetar o estado físico e mental deles.
— Os jurados, especialmente de júris mais longos, podem sofrer alguma coisa até pelo desconforto de ficar horas sentados em cadeiras desconfortáveis, sem contato com o mundo exterior, dormindo em um alojamento precário.
Neste caso do Carandiru, os sete jurados ficam em alojamentos do Fórum da Barra Funda. Toda a alimentação do júri é feita no fórum e os jurados ficam sem acesso a meios de comunicação. Para Ana Lúcia, o ideal para evitar adiamentos e suspensões de julgamento, seria uma possibilidade de alteração da lei no Brasil.
— Uma das coisas que estou pesquisando é o júri na França. Lá, uma das diferenças é que há jurados suplentes. De acordo com a previsão de quantos dias vai durar o júri, o juiz presidente decide quantos jurados suplentes ele acha por bem sortear. Isso significa que um júri muito complexo, que tem previsão de vários dias, certamente teria, no mínimo, três jurados suplentes. No caso de algum jurado passar mal, o suplente poderia substituí-lo sem nenhum prejuízo para o julgamento como um todo.
Segundo a pesquisadora, os jurados suplentes acompanhariam todas as etapas do julgamento, como os titulares, e, caso não houvesse nenhum contratempo com algum integrante do Conselho de Sentença, simplesmente não votariam no final.
— Ele está de plantão para evitar um prejuízo em um evento como esse, que é muito oneroso para o Estado. Correr esse tipo de risco [adiamento de um júri] é inadmissível. O jurado pode passar mal até o momento da votação. Se isso acontece, tudo vai por água abaixo.
Possibilidade de um novo júri
Caso o júri do Carandiru tivesse sido adiado novamente, o julgamento começaria do zero, assim como ocorreu após jurada passar mal na semana passada. Um novo Conselho de Sentença seria sorteado e tudo teria de ser feito novamente, incluindo o depoimento das testemunhas. Segundo Livianu, tudo o que ocorreu até o adiamento do júri é válido e pode ser considerado pelo novo corpo de jurados.
— Temos que recomeçar, mas não houve uma anulação [do julgamento]. Houve uma intercorrência que tornou impossível prosseguir. Isso não significa que os atos praticados até então estejam nulos.
No entanto, Livianu explica que a força de prova não é a mesma.
— Uma coisa é ter documentado no papel ou em vídeo e outra é você ter a produção dessa prova de forma viva diante do jurado. Tem valor, sim [o documentado], mas não tem a mesma força de prova daquilo que se faz diante dos jurados.
Dessa forma, a tendência é que todos os procedimentos sejam repetidos, como explica Pantaleão.
— Tudo o que foi falado deve ser repetido. As testemunhas devem ser inqueridas novamente, até porque o jurado pode pedir esclarecimento para a testemunha através do juiz. Tem que fazer tudo de novo na frente dos novos jurados.
Relembre o caso
O massacre do Carandiru começou após uma discussão entre dois presos dar início a uma rebelião no pavilhão nove. Com a confusão, a tropa de choque da Polícia Militar, comandada pelo coronel Ubiratan Guimarães, foi chamada para conter a revolta.
Ao todo, 286 policiais militares entraram no complexo penitenciário do Carandiru para conter a rebelião em 1992, desses 84 foram acusados de homicídio. Desde aquela época, cinco morreram e agora restam 79 para serem levados a julgamento.
Até hoje, apenas Ubiratan Guimarães chegou a ser condenado a 632 anos de prisão, porém um recurso absolveu o réu e ele não chegou a passar um dia na cadeia. Em setembro de 2006, Guimarães foi encontrado morto com um tiro na barriga em seu apartamento nos Jardins. A ex-namorada dele, a advogada Carla Cepollina, foi a julgamento em novembro do ano passado pelo crime e absolvida.