Ampliação de excludente de ilicitude é deixada de lado na Câmara
Matéria foi enviada pelo Executivo em março, mas não é prioridade da base de apoio do governo e não há sinais de que vai andar
Brasília|Bruna Lima e Sarah Teófilo, do R7, em Brasília
Enviado há quase um mês para apreciação do Congresso, o projeto do Executivo que propõe afrouxar punições para agentes de segurança que matam em ações policiais não mostra sinais de que vai avançar neste ano. Na proposta, o governo traz novamente ao debate o chamado excludente de ilicitude, que exclui a culpabilidade de condutas ilegais em determinadas circunstâncias para integrantes dos órgãos de segurança pública. O tema já foi debatido e esvaziado em 2019 no pacote anticrime apresentado pelo ex-ministro da Justiça Sergio Moro.
A nova tentativa do Executivo, o projeto de lei 733, de 2022, visa alterar normas referentes à legislação penal a fim de “garantir maior amparo jurídico aos integrantes dos órgãos de segurança pública”. Em mensagem enviada ao Congresso junto com o projeto, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Anderson Torres, afirma que as mudanças têm como propósito “conferir tratamento específico à atividade de segurança pública, em consonância com os riscos a que esses profissionais se submetem cotidianamente”.
“Com a edição deste projeto de lei, os profissionais de segurança pública passarão a contar com maior respaldo jurídico no exercício de suas atribuições funcionais e legais, o que configura, inclusive, um dever do Estado para com esses servidores públicos. A melhoria das condições para o exercício das atividades de proteção da ordem pública favorece a sociedade como um todo, o que demonstra a importância do presente projeto normativo”, acrescenta.
A matéria, entretanto, não é tratada como prioridade nem pela própria base do governo. O líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), afirmou ao R7 que a matéria “não está nas prioridades ainda”. Outros parlamentares, como o vice-líder do PSD, Fábio Trad (MS), afirmam que o assunto não é comentado na Casa.
Apesar de mirar especificamente mudanças para as forças de segurança, parlamentares da oposição e especialistas argumentam que o projeto, da maneira como está, abre brechas para a flexibilização geral e põe em risco a própria definição de legítima defesa, por exemplo. "É um equívoco e já foi rejeitado", disse o deputado Orlando Silva (SP), vice-líder do PCdoB, referindo-se à tentativa de ampliação do excludente no pacote anticrime apresentado pelo ex-ministro da Justiça Sergio Moro.
Silva frisou que a figura do excludente já existe e aponta que o projeto parece mais um “jogo político de sinalização” para a base do presidente Jair Bolsonaro do que algo de efeito prático. “As excludentes de ilicitude previstas no Código Penal hoje já dão conta de incorporar todas as possibilidades. Agora, a impressão que eu tenho é que é mais um discurso político do presidente, que tenta fidelizar a sua base”, afirmou.
Mesmo não vendo ações substanciais para emplacar o projeto, deputados contrários às mudanças destacam a necessidade de atenção aos movimentos por parte da base do governo. Na avaliação de Alencar Santana (PT-SP), líder da minoria na Câmara, o projeto representa “uma garantia, uma autorização a agentes de segurança do Estado para matar” e, por isso, deve ser barrado novamente.
“Já houve outras tentativas de emplacar as alterações ao longo desta legislatura. Inclusive era um dos temas previstos no pacote anticrime. O governo ainda continua trazendo um assunto derrotado pelos parlamentares. A gente espera que não prospere e que o recado que a Câmara deu em 2019 seja novamente dado agora em 2022”, disse Alencar ao R7, acrescentando que não enxerga clima para a discussão.
O excludente de ilicitude já é algo previsto no Código Penal, e especialistas afirmam que as forças de segurança estão bem resguardadas em caso de uso da força em uma situação de necessidade. A discussão sempre volta ao Congresso porque o presidente Jair Bolsonaro quer, desde a campanha presidencial, que os policiais tenham mais garantias, ideia que é amparada por parte da categoria.
No âmbito do Congresso, o governo sempre foi derrotado quando o assunto surgiu. Recentemente, ele estava presente no Código Militar, que foi aprovado em fevereiro, após amplos debates, mas sem o trecho que ampliava o excludente de ilicitude.
Licença para matar
Um dos trechos vistos como problemático do projeto enviado pelo ministro Anderson Torres prevê que “não é punível o excesso quando resulta de escusável medo, surpresa ou perturbação de ânimo em face da situação”. Outro diz que “equipara-se à injusta agressão a prática ou a iminência da prática de ato contra a ordem pública ou a incolumidade das pessoas mediante porte ou utilização ostensiva, por parte do agressor ou do suspeito, de arma de fogo ou de outro instrumento capaz de gerar morte ou lesão corporal de natureza grave”.
Especialistas ressaltam que a figura do “medo ou surpresa” acaba sendo ampla demais. Integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Isabel Figueiredo afirma que os dois trechos combinados caracterizam “licença para matar”.
“É a mesma discussão que a gente teve com o Moro, do medo. O que é isso? Em linhas gerais, esse dispositivo junto com a questão da presença de armas, caracteriza, sim, uma licença para matar. Fica muito fácil caracterizar uma situação em que há excludente. E quando você pensa nisso levando em conta os altos índices de letalidade policial do país, se a gente tem esse cenário já muito ruim, a tendência é que o cenário seja ainda pior”, afirma.
Isabel Figueiredo explica que o texto não aumenta os tipos de excludente de ilicitude, mas amplia o sentido, permitindo que mais casos sejam facilmente encaixados na definição.
A especialista frisa que integrantes das forças de segurança já são atendidos pela legislação atual e que é “quase uma lenda urbana que os policiais são presos quando precisam usar a força”. “Não é essa a realidade do país. A realidade é o contrário. Até porque não tem legislação muito clara sobre o uso da força”, explica.
Prisão em flagrante
O projeto de lei prevê que, em caso de flagrante, se o delegado entender que o policial envolvido em uma morte tenha agido em legítima defesa, é possível deixar de efetuar a prisão em flagrante, amparado pelo excludente de ilicitude ou culpabilidade. Em relação a esse trecho, Isabel ressalta que a prisão em flagrante não é regra em uma ação em que o policial mata alguém. Além disso, ela afirma que em caso de prisão irregular ou desnecessária, ela será relaxada pelo juiz em 24 horas, na audiência de custódia.
“É uma atribuição do Poder Judiciário e não deve ser dada ao delegado de polícia, principalmente se você pensar que pode haver excesso policial por parte de policiais civis, e não só militares. O texto está dando margem de questionamento de imparcialidade. Esse tipo de situação dentro de uma lógica democrática cabe ao Judiciário”, afirmou.
Ainda que a proposta tenha por objetivo dar mais suporte aos policiais, a professora da FGV (Fundação Getulio Vargas) e membro representante da OAB/RJ (Ordem dos Advogados do Brasil) no Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Fernanda Prates, refuta o texto, afirmando que a flexibilização não resolve o cerne do problema.
“Esse projeto muito provavelmente vai dificultar ainda mais a eventual responsabilização desses agentes de Estado”, diz. Prates acompanha de perto investigações relacionadas a mortes em comunidades cariocas provocadas em ações registradas como confrontos contra policiais e diz que vê que, em casos de excesso, é difícil "reverter a ideia de que o policial estava se defendendo e de que a pessoa estava atirando, pois a investigação já parte desse princípio".
"Há muito o que melhorar na situação das forças de segurança, mas não acredito que seja diminuindo a responsabilidade desses agentes que a gente vai resolver esses problemas”, defende.