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Crescer sem mãe: as marcas na saúde mental dos mais de 70 mil órfãos da violência no Brasil

Levantamento do R7 revela que pelo menos 70 mil pessoas perderam a mãe para crimes violentos desde 2015

Brasília|Edis Henrique Peres, do R7, em BrasíliaOpens in new window

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Brasil tem mais de 70 mil órfãos de mulheres mortas por crimes violentos Andre Borges/Agência Brasília - 17.05.2027

Nos últimos dez anos, pelo menos 70 mil pessoas perderam a mãe por crimes violentos contra as mulheres. Considerando apenas os casos tipificados como feminicídio, o Brasil teve cerca de 19,5 mil órfãos entre 2015 e o começo deste ano. O crime, muitas vezes cometido por motivos banais, como ciúme e desejo de controle, deixa marcas severas principalmente em crianças e adolescentes.

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Ao longo de um mês, o R7 ouviu especialistas e levantou dados para entender o cenário do país. O Brasil, no entanto, ainda não conta com uma estimativa oficial do número de órfãos por feminicídio ou por crimes violentos contra as mulheres.


Assim, a pedido do R7, o especialista em estatística Giscard Stephanou analisou diversos levantamentos e banco de dados para chegar à estimativa de pelo menos 70 mil órfãos dessa violência.

As informações foram levantadas com base no Sinesp (Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública), que contém dados sobre os feminicídios e homicídios dolosos de mulheres desde 2015.


Esses números foram confrontados com a taxa de fecundidade no Brasil estimada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Raio-x dos órfãos de feminicídio no Brasil Luce Costa/Arte R7
Raio-x dos órfãos dos homicídios dolosos contra mulheres no Brasil Luce Costa/Arte R7

O especialista pontua que a categorização de feminicídio depende do entendimento aplicado no momento do registro do crime. Assim, feminicídios podem ser tratados como homicídios simples ou lesões corporais seguidas da morte, “o que invisibiliza a real dimensão da violência letal contra mulheres”.


“Por essa razão, a análise da violência letal contra as mulheres exige que os dados de feminicídios sejam interpretados em conjunto com os números de homicídios e lesões corporais seguidas de morte de mulheres, para uma compreensão completa e precisa dessa problemática”, explica.

Giscard lamenta: “O total de órfãos decorrentes de feminicídio e de homicídio doloso e lesão corporal seguidas de morte é tão grande que equivale à capacidade do Estádio Mané Garrincha [73 mil pessoas]”.


Marcas para toda a vida

Psicólogo e doutorando em psicologia clínica e cultura da UnB (Universidade de Brasília), Marcelo Porto alerta que “o feminicídio não se encerra com o assassinato da mulher”.

“Este é somente um de seus tentáculos. Num cenário em que a maioria das mulheres mortas por feminicídio eram mães, é preciso notar que outras adversidades seguem acometendo órfãos e familiares”, pontua.

“Após o feminicídio, os filhos das vítimas são lançados de forma abrupta numa condição de permanente mudança e instabilidade que passa a sobrecarregar e comprometer todo o seu sistema de regulação emocional. Nesse contexto, importa refletir sobre as adversidades enfrentadas pelos órfãos e pelos familiares quando a conjugalidade e a parentalidade são brutalmente desfeitas como resultado do feminicídio, levando ao encarceramento do autor ou mesmo à morte por suicídio”, observa.

O psicólogo explica que muitos órfãos do feminicídio experienciam uma espécie de tripla perda: morte da mãe, prisão ou suicídio do pai ou padrasto e separação dos irmãos.

Porto reforça que o tema da violência mobiliza uma diversidade de questões, no entanto, “as intervenções nessa seara costumam ter um valor cultural e institucional muito mais voltado para estratégias de combate de alto risco, heroísmo, repressão e punibilidade em detrimento de ações pautadas em uma real compreensão de sua complexidade multicausal, bem como do fomento de política de segurança pública, social e de prevenção eficazes”.

A psicóloga Andressa Taketa explica que as crianças e adolescentes expostos à violência doméstica enfrentam consequências que afetam seu desenvolvimento emocional, social e cognitivo.

“Esse ambiente caótico deixa as crianças e adolescentes em estado de alerta, como se estivessem esperando o perigo a qualquer momento. Isso gera ansiedade, depressão e uma autoestima muito baixa. Muitas se culpam por essa violência, pensando que fizeram algo errado. Algumas crianças ficam agressivas, reproduzindo o que veem em casa. Outras fazem o contrário: se fecham completamente, ficam muito quietas e evitam chamar atenção”, comenta.

Ela cita também dificuldades de relacionamento e queda no desempenho acadêmico. “Sintomas psicossomáticos como dores de cabeça, problemas gastrointestinais e distúrbios do sono também são comuns, refletindo o impacto do estresse crônico no organismo em desenvolvimento”, observa.

O trauma é ainda mais grave quando a criança presencia o feminicídio da mãe, como muitos casos noticiados pelo país.

“Quando uma mãe é assassinada, especialmente pelo pai ou padrasto, a criança enfrenta o luto em relação à perda da mãe e, ao mesmo tempo, a perda da figura paterna, que se tornou o agressor. Essas crianças frequentemente desenvolvem transtorno de estresse pós-traumático. Elas revivem o trauma através de pesadelos, flashbacks e evitam tudo que lembre o que aconteceu. Alguns chegam a presenciar o crime ou encontrar o corpo da mãe, o que torna o trauma ainda mais intenso”, diz.

O sentimento de culpa

A especialista explica que, para o órfão da violência contra a mulher, a culpa se torna um sentimento comum. “A criança se pergunta: ‘Será que eu poderia ter impedido?’, ‘Por que não denunciei antes?’, ‘Será que foi culpa minha?’. Essa culpa inadequada pode destruir a autoestima e afetar todos os relacionamentos futuros. Além disso, essas crianças perdem completamente a confiança nas pessoas. Se aquele que deveria proteger se tornou o agressor, como confiar em alguém novamente? Isso gera dificuldades enormes para formar vínculos afetivos saudáveis”, alerta.

Neuropsicóloga pelo Instituto de Psicologia Aplicada e Formação de Portugal, Juliana Gebrim acrescenta que esse trauma, se não tratado adequadamente, pode deixar marcas profundas e permanentes na vida da pessoa.

“Ao vivenciar essa experiência negativa, os familiares precisam providenciar imediatamente um suporte contínuo e especializado a essa pessoa. É muito importante que a criança receba acompanhamento psicológico com profissionais capacitados em trauma infantil e luto. Esse apoio deve estar inserido em uma rede de proteção integrada, que inclua também apoio da escola e acompanhamento familiar”, explica.

Ela acrescenta ainda que é fundamental garantir à criança um ambiente seguro, estável e afetuoso. “Onde ela possa reconstruir sua sensação de segurança e dignidade após ter passado por esse tipo de experiência. O acolhimento e o amor da família devem ser priorizados e acompanhados de uma escuta atenta e sensível, sempre respeitando os sentimentos da criança e dando o tempo necessário para ela se recuperar”, defende Juliana.

O cenário no Brasil

Para a psicóloga, o Brasil ainda enfrenta grandes desafios no cuidado de crianças e adolescentes vítimas da violência doméstica e do feminicídio.

“Apesar de avanços legislativos importantes, como a Lei do Feminicídio e o Estatuto da Criança e do Adolescente, há uma deficiência evidente de políticas públicas estruturadas e acessíveis para atender ao problema de forma mais efetiva”, pondera.

Ela avalia que a rede de atendimento é muitas vezes fragmentada, sobrecarregada e desigual entre as diferentes regiões do país.

“A meu ver, para avançar, ainda é preciso investir na formação de profissionais, ampliar o número de psicólogos e assistentes sociais nas escolas e serviços públicos, fortalecer os conselhos tutelares e garantir que as crianças tenham acesso real a um cuidado integral e humanizado. Além disso, acredito ser urgente a implementação de ações preventivas e educativas que combatam a cultura da violência e valorizem os vínculos saudáveis desde a infância”, defende.

Andressa Taketa lembra que o Brasil ocupa a quinta posição mundial em números de feminicídio, “com uma mulher assassinada a cada 2 horas, resultando em milhares de crianças órfãs que necessitam de suporte adequado”.

“O país demonstrou avanços importantes com a sanção da lei que institui pensão especial para órfãos do feminicídio, mas ainda insuficiente diante da gravidade do cenário. Essas crianças precisam mais do que auxílio financeiro, precisam de acolhimento, segurança e acompanhamento psicológico de longo prazo”, ressalta.

Para a psicóloga, “é importante ampliar drasticamente o número de psicólogos especializados na rede pública e investir pesadamente na capacitação de todos os profissionais que trabalham com crianças”.

Assim como “desenvolver protocolos específicos de atendimento e, principalmente, garantir acompanhamento de longo prazo, não apenas nos primeiros meses após o trauma”. “Além disso, são necessárias políticas robustas de prevenção à violência doméstica, incluindo campanhas de conscientização, programas educacionais e terapêuticos”, pontua.

O ciclo da violência doméstica

Outra ação que precisa ser fortalecida é a conscientização e o apoio para que as mulheres consigam escapar da violência doméstica. Marcelo Porto reforça: “Uma visão reducionista ou superficial [da violência doméstica] atrapalha a compreensão multifatorial do problema”.

“Narrativas que tendem a explicar as condutas de homens autores de feminicídio como resultado direto de alguma psicopatologia, ou simplesmente compará-los a monstros, não ajudam a elucidar circunstâncias importantes do fenômeno. Os feminicídios e os feminicídios seguidos por suicídios acontecem em conexão com uma dinâmica complexa”, alerta.

“Para conseguirmos compreender essa dinâmica, faz-se necessário a realização de pesquisa científica, analisar dados estatísticos e compreender os aspectos sistêmicos da relação conjugal e das relações de namoro ou envolvimento íntimo, que naturalizam a dinâmica de violência contra as mulheres, ratificando valores patriarcais, machistas e de cumplicidade entre homens, cultivando um modelo de masculinidade que reproduz crenças de poder, posse e controle sobre o corpo feminino”, acrescenta Porto.

O especialista alerta que a violência escala de forma lenta e gradual, e alguns sinais podem passar despercebidos ou não serem levados a sério o suficiente. “Nesse sentido, é muito importante que as mulheres consigam falar sobre os riscos, as ameaças, intimidações e qualquer tentativa de controle. E consigam formalizar na polícia ou no Ministério Público, ou em qualquer outro órgão da segurança pública e da rede de proteção, a violência doméstica sofrida ou prestes a sofrer”, aconselha.

Para ele, se por alguma razão a vítima não puder efetivar a denúncia, ele deve ser pelo menos amparada por algum serviço especializado ou rede de apoio até encontrar meios seguros de denunciar o agressor.

“Tanto a mulher quanto qualquer pessoa de sua rede de apoio podem tomar providências para fazer com que a denúncia da violência chegue ao conhecimento das autoridades, a fim de que o autor seja freado e responsabilizado. É preciso se indignar com esse tipo de violência, para não cair na indiferença e cumplicidade. Com o acionamento da Justiça, permite-se que a mulher ingresse num caminho de construção de fatores de proteção muito importantes para sua segurança e sobrevivência”, diz.

Porto também ressalta que é preciso desfazer a crença que a denúncia ou as medidas protetivas são ineficientes para proteger as mulheres da violência.

“Este tipo de crença é um mito, já que as estatísticas mostram que a maioria das mulheres que sofreram feminicídio não haviam denunciado seu ofensor. É imperioso ressaltar que crenças como ‘não adianta denunciar’ ou ‘denunciar só piora as coisas’ reforçam a cultura da naturalização da violência e corroboram com prejuízos à elucidação e melhor compreensão da complexidade e das circunstâncias que podem favorecer a ocorrência de novos episódios de violência doméstica e de feminicídio”, diz.

Porto defende que “é necessário combater tais crenças, investindo na prevenção, na divulgação, na elaboração de novas políticas públicas, na conscientização social e, cada vez mais, encorajar as mulheres a denunciarem a violência doméstica, para salvar vidas e reduzir sua incidência na sociedade”.

Avanços na legislação

Advogada especialista em direito penal do escritório Kolbe Advogados e Associados, Jéssica Marques explica que “o ordenamento jurídico protetivo (leis 11.340/2006 e 14.344/2022) prevê mecanismos de segurança e de prevenção à violência doméstica que objetivam romper ciclo de violência afastando as vítimas de seu algoz”.

“As medidas protetivas, que visam proteger a integridade física, psicológica, patrimonial, moral e sexual das vítimas, auxiliam no combate à violência quando somadas ao atendimento especializado familiar realizado por equipe multidisciplinar que oferece atendimento e acolhimento psicossocial, jurídico e de saúde”, lista.

Ela cita também que a lei 14.717, publicada em 2023, é outra medida com o intuito de amparar financeiramente os dependentes menores de 18 anos das vítimas de feminicídio. A norma criou uma pensão especial, no valor de até um salário mínimo, cujo benefício é concedido aos filhos e dependentes menores de 18 anos de mulheres vítimas de feminicídio cuja renda familiar mensal per capita seja inferior a 25% do salário mínimo.

“O referido benefício não será concedido à criança ou ao adolescente que tiver sido condenado, mediante sentença com trânsito em julgado, pelo ato infracional análogo ao crime cometido contra a mulher vítima da violência. Além disso, o autor do fato não poderá representar o menor para o recebimento e gestão do referido benefício, cujo pagamento será realizado até o órfão completar 18 anos”, explica.

Como denunciar a violência doméstica?

  • Ligue 180 – Central de Atendimento à Mulher
  • Disque 100 – Disque Direitos Humanos
  • 190 – Polícia Militar
  • Aplicativo Direitos Humanos Brasil

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