Dono de bar no DF aguarda julgamento após denúncias de estupros em série
Ao todo, 24 vítimas foram identificadas e 12 prestaram queixa; relatos de abuso começaram a surgir há dois anos
Brasília|Jéssica Moura, do R7, em Brasília
Dois anos depois do surgimento de denúncias de que teria abusado sexualmente de mais de 20 mulheres, o proprietário de um bar na comercial da quadra 408 da Asa Norte, em Brasília, ainda aguarda julgamento. Em uma audiência realizada em maio, as testemunhas foram ouvidas, mas até agora os julgamentos não foram marcados.
O dono do bar Bambambã, Gabriel Mesquita, 35 anos, foi denunciado pelo Ministério Público em 2020 pela suspeita de ter dopado uma mulher e abusado sexualmente da vítima enquanto ela não tinha consciência para se opor. Outras 23 mulheres relataram abusos semelhantes. Na audiência de maio deste ano, a promotoria pediu a condenação do suspeito.
Relato em rede social chama a atenção de outras vítimas
Em janeiro de 2020, Amanda* decidiu expor o trauma que enfrentava havia mais de um ano. Ao publicar nas redes sociais um texto em que descreveu o agressor como um homem politicamente engajado e interessante, mas que a violentou, ela não imaginava a repercussão que a publicação teria.
Em poucas horas, a postagem — que não mencionava nomes — chegou a outras vítimas, que reconheceram as características do homem e se identificaram com o relato de Amanda. O texto viralizou — houve mais de 1.700 reações, 314 compartilhamentos e 777 comentários endossando o conteúdo.
A caixa de mensagens privadas de Amanda ficou lotada: mulheres que tinham tido experiências parecidas com a dela tentavam contato. Elas contavam que tinham se envolvido com Gabriel Mesquita e até tinham tido relações sexuais consentidas com ele. No entanto, durante as relações, segundo elas, o homem retirava o preservativo e forçava práticas que iam contra a vontade das parceiras. Algumas declararam que foram dopadas ao ingerir bebidas que, suspeita-se, estavam adulteradas.
A postagem com a denúncia chegou à ex-mulher de Gabriel, Betina*, que foi casada com ele entre 2011 e 2014. "O Gabriel é um cara sedutor, que fica atrás de um bar, politizado, antropólogo, tem uma piada rápida. Ele liga no dia seguinte, faz café e trata bem."
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Como ainda eram amigos, Betina o confrontou com as acusações. Segundo Betina, Gabriel disse a ela que, "de tempos em tempos, umas loucas fazem acusações infundadas". Ela decidiu então ouvir as mulheres que denunciam o ex-marido.
Betina entrou em contato com Amanda e combinou um encontro com ela. O contato presencial entre as duas foi rodeado de tensões: desconfiada de que Betina quisesse recolher informações para repassar a Gabriel, Amanda foi ao restaurante na companhia de Samara*, outra denunciante. Amigos de Amanda acompanhavam o encontro em uma mesa próxima.
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"Eu fui para ouvir. Conforme elas foram falando com tanto detalhe — as músicas que ele gosta de ouvir quando está bêbado, que ele cantava, chorava, que falava do pai —, não tive dúvidas. Percebi que o que eu tinha vivido podia embasar o relato dessas mulheres e me solidarizei", afirmou Betina.
Ela afirma que, quando morava em São Paulo com Gabriel, ele chegava tarde em casa e forçava tipos de relação com ela apesar de pedidos para que parasse. "Depois, com o corpo machucado, eu ficava quatro dias sem falar com ele", contou.
Rede de apoio
Quando surgiram as denúncias, as mulheres que teriam sido vítimas de Gabriel participaram de uma reunião na casa de Samara para compartilhar os relatos e debater sobre os próximos passos. "Fui superbem recebida, mas esse foi um dos piores dias em relação a isso. [Eu] não tinha relação com ninguém [ali], não conhecia nem de vista. As histórias eram muito pesadas", recorda Laura*, que conheceu Gabriel em um aplicativo de relacionamentos quando tinha 22 anos, em 2015. "Cada uma foi contando sua história, fizemos uma linha do tempo para ver quem tinha sido a primeira."
Golpe
Às recém-conhecidas, Laura disse que, após tomar dois copos de cerveja na companhia de Gabriel no bar dele, se sentiu mal. "Minha pressão baixou. Ele prontamente disse que morava em cima do bar e me ofereceu água. Eu lembro de ter subido, ele não acendeu a luz, me sentei no colchonete da sala, ele me serviu a água e eu apaguei", relatou. "Quando acordei, estava deitada na barriga dele, ele forçou minha cabeça para o sexo oral. Tive vontade de vomitar e corri para o banheiro."
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Carolina* conheceu Gabriel no bar ainda em 2004, quando ele era garçom. A amiga que a acompanhava convidou Gabriel para ir com elas para a casa de Carolina, na Asa Norte, tomar um vinho levado pelo rapaz. A amiga foi embora deixando Gabriel e Carolina sozinhos. "Depois de meia hora, eu comecei a me sentir bastante bêbada e grogue, e, do nada, o Gabriel já tinha me arrastado para a cama", conta.
Carolina lembra que mal conseguia se mexer e que estava muito confusa, com o corpo muito pesado. "Eu estava me sentindo muito, mas muito culpada e muito envergonhada", conta. Segundo ela, Gabriel a forçou a atos sexuais que a deixaram machucada e com dores no dia seguinte.
Antes de sair, Gabriel deixou um bilhete com o número dele. "Aquele bilhete me deixou enojada, e eu sabia que era uma forma de tentar amenizar o que ele tinha feito comigo. Como tínhamos centenas de amigos em comum, ele não era alguém que eu enxergaria como um abusador."
Denúncia
Depois do encontro, as mulheres decidiram que juntas procurariam a Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam), na Asa Norte. Ao todo, 11 denunciantes compareceram para registrar o boletim de ocorrência.
Laura* foi a primeira a registrar o B.O. "Minha madrinha foi comigo, eu não tive coragem de contar para os meus pais. Como não lembrava de muita coisa, foi muito difícil aceitar que houve um sexo forçado, que ele estava violando meu corpo. Comecei a tomar remédio, e foi caindo a ficha. Quis fazer logo o boletim para encorajar outras mulheres."
Apesar do acolhimento, as mulheres dizem que a delegada-chefe fez ameaças de arquivar a investigação caso as denúncias fossem vazadas para a imprensa. A Polícia Civil foi procurada, mas disse que não comentaria o caso por se tratar de violação sexual. Em janeiro do ano passado, a delegada responsável foi exonerada após acusações de assédio moral contra servidores da Deam.
Caso vai à Justiça
Encorajada pelas denúncias, Alice* acabou prestando queixa em outra ocasião, dias depois. Foi o caso dela que motivou a denúncia do Ministério Público, acolhida pela Justiça. Em maio, depois de adiamentos, a audiência ocorreu. "Estava muito nervosa, nem consegui dormir durante a noite, tinha medo depois do caso da Mariana Ferrer, como o promotor a tratou, me imaginei naquela cena", diz Alice.
"Foi horrível, com vários estranhos na sala, ter que contar coisas que são tão íntimas. Toda vez que conto, revivo. O juiz me poupou bastante, foi rápido." Diante da Corte, Alice relatou a agressão.
Ela conta que, em 2018, após uma troca de mensagens por um aplicativo de relacionamentos, Alice aceitou o convite de Gabriel para se encontrarem no bar dele. Como ele estava trabalhando quando ela chegou, eles pouco conversaram, mas Gabriel serviu drinques a ela. Quando terminou o expediente, ele a convidou para subir até seu apartamento.
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Quando chegaram ao local, Gabriel preparou mais um drinque para servir a ela. Na ocasião, ela perguntou se ele queria ajuda, mas Gabriel dispensou a oferta. "Tomei o drinque e comecei a me sentir estranha, como se estivesse muito bêbada, e não era o caso, conheço meu corpo. Fui ficando entorpecida, me levantei com a visão turva", relatou.
Em seguida, os dois foram para o quarto de Gabriel, onde mantiveram relações consensuais. No entanto, durante o ato, ele a virou e passou a forçar práticas que ela não consentiu, afirma. Ela conta que pediu que ele parasse, pois estava sentindo muita dor, mas ele não atendeu ao pedido. "Esperei ele acabar, fiquei com muita dor," conta a vítima.
"Passou 2019 inteiro, eu só contei para uma amiga, falei que foi um sexo estranho, em nenhum momento pensei que tinha sido estuprada." Um ano depois, em uma festa, enquanto conversava sobre bares da cidade com um conhecido, ela mencionou o dono do Bambambã. O interlocutor a questionou sobre como tinha sido o encontro com ele. "Conheço histórias de que ele estuprou pessoas, existe esse boato em Brasília", disse o conhecido. "É muito difícil você aceitar que sofreu violência, ainda mais para mim, que me acho uma mulher consciente, bem informada, viver isso aos 31 anos, com filho. Foi chocante."
Outras cinco mulheres abusadas por Gabriel prestaram depoimento na condição de testemunhas de acusação. Contudo, quando foram ouvidas, o juiz reconheceu que também eram vítimas.
Defesa
Em depoimento na delegacia, Gabriel afirmou que ficou "perplexo" ao tomar conhecimento das denúncias e alegou que os relacionamentos foram "consensuais e afetivos". Disse ainda que o bar era seu meio de sobrevivência e chegou a ser pichado em retaliação. Ele negou que tenha cometido os crimes ou oferecido bebida adulterada às vítimas.
Nas alegações finais, a defesa argumentou que "não restaram indícios mínimos de qualquer ato comissivo por parte do acusado, violência ou grave ameaça" que justificassem a denúncia de estupro.
A defesa de Gabriel se manifestou por meio de nota. “Sobre os demais casos que estão em andamento, reitero que considero a inocência de meu cliente. Todavia, por respeito ao Poder Judiciário, sendo o caso sigiloso, nossas manifestações serão técnicas e ocorrerão nos autos do processo."
O MP pediu a condenação de Gabriel. “A materialidade e a autoria do delito foram demonstradas nos elementos informativos”, diz a peça da acusação. Para a promotoria, todos os depoimentos são contundentes, apesar de a defesa técnica ter alegado a "impossibilidade de comprovação da vulnerabilidade". "É inconteste que o acusado se aproveitou do estado de entorpecimento da vítima, seja pelo álcool, seja pela intoxicação por outra substância."
*As vítimas tiveram os nomes alterados para que a identidade delas fosse preservada
Colaborou Sarah Teófilo