Especialistas enxergam ‘abuso’ da Polícia Federal em indiciamentos de deputados
Parlamentares criticaram atuação de delegado do órgão
Brasília|Rute Moraes, do R7, em Brasília
Nesta semana, os deputados federais Marcel van Hattem (Novo-RS) e Cabo Gilberto Silva (PL-PB) foram indiciados, por injúria e difamação, pela PF (Polícia Federal) por discursos feitos na tribuna da Câmara contra o delegado da PF Fábio Shor. A ação gerou críticas por parte do presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL). Especialistas ouvidos pelo R7 apontam “abuso” por parte da corporação nos indiciamentos em virtude da imunidade parlamentar.
Em 14 de agosto, Van Hattem usou a tribuna da Câmara para chamar Shor de “covarde” e de “bandido”. Em seguida, Gilberto disse que o delegado era a “putinha” e a “cadelinha” do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes. O delegado é responsável por investigações da PF em casos que estão sob relatoria do magistrado. O deputado gaúcho afirmou que Shor “cria, sim, relatórios fraudulentos para, por exemplo, manter preso Filipe Martins [ex-assessor especial do ex-presidente Jair Bolsonaro] ilegalmente e sem fundamentação”.
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Advogado criminalista, Antônio Gonçalves explicou que, nos casos das falas, os parlamentares podem ser penalizados pela Casa a qual pertencem, portanto, a Câmara dos Deputados. “[No caso da] PF fazer o indiciamento houve um excesso. A PF extrapola a sua função porque não é dela a competência para imputar um crime a alguém que possua um foro privilegiado. No caso, a PF poderia fazer uma representação e encaminhar ao presidente da Câmara”, defendeu.
Dessa forma, segundo ele, a Câmara é quem deve decidir se eles extrapolaram, ou não. Apesar disso, Gonçalves ponderou que isso não significa que as declarações dos parlamentares estão corretas. “Eles podem ter cometido uma infração ou falta ética. Mas a análise disso é da própria Câmara”, continuou. Segundo o advogado, a PF cometeu abuso de autoridade, justamente por não ter a competência para fazer o indiciamento.
“Quando um deputado faz um discurso na tribuna, está protegido pela imunidade parlamentar. Desde que não seja ofensivo, se fizer um ato racista, o procedimento segue sendo o mesmo. Os limites da liberdade de expressão tem que ser observados. Não vale tudo no palanque. Não se pode falar o que se bem entende sob o manto da liberdade parlamentar, mas quem analisa isso não é a PF, é a Câmara”, continuou.
O advogado constitucionalista Andre Marsiglia explicou que a Constituição prevê que “quaisquer palavras dos parlamentares são invioláveis”, ou seja, que eles teriam uma liberdade de expressão mais ampla possível. Apesar de destacar que o direito não é absoluto, ele defende que o direito é maior do que o direito individual do ofendido, pois o parlamentar fala “em nome de seus eleitores”.
Ele ponderou, contudo, que o STF interpreta tal imunidade de forma condicionada a se a fala estiver relacionada ao exercício do mandato ou se for feita da tribuna do plenário. Ele explicou que, nos casos de Van Hattem e de Cabo Gilberto, “as falas foram feitas na tribuna”, por isso seriam abarcadas pela imunidade parlamentar. “O que está sendo feito é uma relativização da própria jurisprudência do STF, por isso, o caso é grave. A própria jurisprudência está sendo atualizada para tornar a imunidade parlamentar mais restritiva do que já era”, destacou.
“A ação é abusiva porque a PF, ao indiciar os deputados, passar por cima da jurisprudência do STF sobre imunidade parlamentar”, completou. O especialista defende que não há motivos para o órgão “investigar deputados por suas falas em caso algum”. Ele acredita que a PF poderia investigar os deputados com respaldo em alguma leitura na jurisprudência do STF ou da Constituição. “Nesses casos, não há respaldo para o indiciamento”, ponderou.
Marsiglia enxerga semelhanças entre os dois casos e o do ex-deputado federal Daniel Silveira, preso desde fevereiro de 2023, quando descumpriu medidas cautelares impostas pela Corte Suprema. Em 2022, Silveira foi condenado pelo STF a oito anos e nove meses por ameaça ao Estado democrático de Direito e coação no curso do processo. Ele gravou um vídeo com ofensas e ameaças a ministros da Corte.
“A semelhança é que todos eles falaram de forma critica, mas são todos possivelmente punidos pela fala, que é a ferramenta de trabalho do parlamentar”, contou. Ele ressaltou, porém, que o que torna o caso de Van Hattem e Gilberto mais “grave” é que é o “primeiro caso, em que há um indiciamento de um parlamentar por falas feitas de cima da tribuna, que é um território sagrado para o Parlamento”, destacou.
A imunidade parlamentar existe para proteger os legisladores de perseguições políticas. A Constituição prevê que deputados e senadores “são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos". Eles também só podem ser presos em flagrante de crime inafiançável.
Lira diz que Câmara vai ‘chegar aos últimos limites’ contra quem cometer ‘abusos’ ao Parlamento
Nesta semana, Lira criticou a ação da PF e disse que ambos is deputados indiciados “não são merecedores dos inquéritos e dos indiciamentos”. “Essa presidência respeita, por mais que discorde, de determinadas falas, mas tenho a obrigação de respeitá-las por que essa tribuna é inviolável”, disse Lira sentado à Mesa Diretora da Casa.
Conforme Lira, a Câmara vai “chegar aos últimos limites para que respondam por abuso de autoridade quem infringir a capacidade dos parlamentares” da Casa. O deputado alagoano ressaltou que, determinadas falas dos deputados, devem receber atuação da corregedoria e do Conselho de Ética, mas que outras declarações “não merecem o tratamento que estão tendo nem da PF e nem de outros órgãos do Estado brasileiro”.
Conforme Gonçalves, além de proteger seus membros, a Casa pode apurar se houve excessos na atuação da PF e, eventualmente, encaminhar a investigação à PGR (Procuradoria-Geral da República). Já Marsigla explicou que a Casa pode auxiliar os parlamentares na defesa perante à Justiça e, se eventualmente, eles forem condenados a prisão, a Casa pode negar o cumprimento da pena ao analisar o mérito em plenário.
O indiciamento é um ato formal realizado pela autoridade policial durante a investigação e ocorre quando, com base em provas coletadas, os agentes identificam uma pessoa como suspeita. Na prática, é apenas uma fase do processo.