Estudo do governo de 2015 previa aumento de 15% nas chuvas e inundações no Sul
Publicações apresentavam possíveis impactos das mudanças climáticas nas temperaturas, na infraestrutura e na agricultura
Brasília|Rafaela Soares, do R7, em Brasília
Um estudo encomendado pelo governo da ex-presidente Dilma Rousseff em 2015 já alertava para um possível aumento de 15% nas chuvas na região Sul do país, principalmente, na Bacia do Uruguai, além do aumento de temperaturas no Centro-Oeste e no Nordeste. “Especificamente, há possibilidades de aumento de frequência dos eventos de cheia e inundações na região Sul e de eventos de seca nas regiões Norte/Nordeste”, destacou a publicação.
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A principal causa seriam as mudanças climáticas. Segundo um dos relatórios disponibilizados anos depois, o objetivo era subsidiar processos relevantes no âmbito da Política Nacional sobre Mudança do Clima, em particular, o Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima, na época em fase de conclusão no governo federal.
O estudo fazia parte de um programa chamado “Brasil 2040: cenários e alternativas de adaptação à mudança do clima”, que era coordenado pela SAE, na época gerida pelo ex-ministro Marcelo Neri. O trabalho era dividido entre sete equipes, que eram responsáveis por analisar os efeitos do “novo clima” em vários aspectos, como impactos na matriz energética e na agricultura.
Entre os participantes, estavam especialistas de diversos institutos de pesquisas de todo o Brasil, alguns, inclusive, públicos, como o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e FCPC (Fundação Cearense de Pesquisa e Cultura). O estudo se propôs a analisar três períodos temporais: 2011 a 2040; 2041 a 2070; e 2071 a 2100.
O gráfico abaixo é um dos exemplos apresentados. No caso, o possível aumento da temperatura média do Brasil foi calculado a partir de dois cenários climáticos: um onde as emissões dos gases poluentes permaneceriam estáveis (coluna da esquerda) e outro onde a produção aumentaria (coluna da direita).
“Tínhamos sete times trabalhando em diferentes setores. Na [previsão do cenário na área da] saúde, tínhamos a Fiocruz; na questão de águas, Funceme [Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos]; na parte costeira, o pessoal do Ita [Instituto Tecnológico de Aeronáutica] e algumas outras universidades.”
Em relação às chuvas, os três intervalos de tempos, as simulações mostram o extremo sul do Brasil com anomalias positivas, ou seja, aumento na quantidade de chuvas e as demais regiões do país com anomalias negativas, ou seja, uma diminuição das precipitações.
O cenário mais grave também indicava um tempo mais seco na maior parte do Brasil, principalmente no litoral das regiões Nordeste e Sudeste do país.
Segundo a pesquisadora e diretora do programa Brasil 2040, Natalie Unterstell, antes e enquanto o estudo era realizado em várias partes do país, reuniões com representantes de órgãos governamentais e ministérios já estavam ocorrendo havia dois anos. Ali, eram discutidas as obras que deveriam ser feitas para adaptar o país.
“Foi uma mensagem bastante dura e forte, mas baseada em dados científicos, e acredito que para algumas pessoas no governo tenha sido muito difícil compreender.”
Hidrelétricas
Um dos setores analisados na época era o possível impacto na matriz energética do país, formada, principalmente, por hidrelétricas. “Os cenários mostraram um quadro bastante difícil, que nós estamos enfrentando, inclusive, com a redução das vazões na região Norte”, explica Natalie.
Em 2015, o governo se preparava para inaugurar a estrutura de Belo Monte, no Pará. “Essas projeções mostraram que algumas das hidrelétricas planejadas teriam muita dificuldade de se viabilizar.”
Em uma das projeções encontradas, alguns reservatórios, como o de Belo Monte e Tucuruí, poderiam ter suas vazões reduzidas em até 50% em 2040.
“Eles [dados apresentados] traziam à tona uma avaliação da ciência sobre algo possível e não desejável. Era 2014 -2015, e 71% da nossa matriz dependia de hidroelétricas.”
Todos os resultados eram levados para as reuniões entre representantes do governo e os estudiosos, e o papel dos cientistas era trazer uma “mudança de mentalidade”, como descreveu Natalie em uma postagem nas redes sociais.
Porém, a partir de uma mudança no comando da SAE, o cenário mudou. Segundo a cientista, uma nova pessoa assumiu a coordenação, por ordem do novo ministro, Mangabeira Unger, e realizou mudanças estruturais.
Mesmo assim, ainda segundo Natalie, os trabalhos continuaram e foram descobertos pontos importantes. Por exemplo, estudiosos da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) apontaram que o planejamento energético tinha que mudar em função das alterações climáticas e hidrográficas.
No entanto, em março de 2023, vários participantes do estudo foram exonerados da pasta. “Eu não sei se esse [dados sobre hidroelétricas] foi o motivo do engavetamento ou da interrupção abrupta [do programa]. Realmente, só quem estava naquele momento poderia dizer, mas essa explicação nunca foi dada”, ressalta a pesquisadora.
A pesquisadora afirmou que a próxima etapa do projeto seria, justamente, o trabalho de tomada de decisões. “Quer dizer, uma vez que a gente tivesse as opções de adaptação à mesa, elas teriam que entrar em modo de priorização de investimento, e isso acabou não ocorrendo”, disse.
“A gente já tem informações científicas mais atualizadas. Vale lembrar que o programa durou até 2015. Desde então, a ciência climática evoluiu bastante, e as projeções para as regiões estão disponíveis. O que eu, realmente, acho que teria acontecido de bom se a gente tivesse evoluído, era a questão da tomada de decisão, é isso que tá faltando hoje.”
O documento foi remetido ainda no final do primeiro semestre de 2015 pela Secretaria de Assuntos Estratégicos ao Ministério do Meio Ambiente e incorporado ao Plano Nacional de Adaptação para Mudança Climática.
“A assessoria de imprensa da ex-presidenta Dilma Rousseff rechaça a notícia de que o documento Brasil 2040, relatório produzido pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, tenha sido ‘engavetado’ pelo governo federal. Tal informação não procede e ignora a tramitação do estudo, que resultou na política do governo brasileiro para o enfrentamento das mudanças climáticas”, afirmou, em nota.
Importância do Novo PAC
Na análise da cientista, o ponto principal é que exista um planejamento por parte do governo. “A gente já tem hoje 1,2ºC de aumento na temperatura, e sabemos que passar de 1,5ºC fica muito difícil [...], mas ainda não é tarde demais.”
A tese é defendida por outros profissionais da área. O presidente do Proam (Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental) afirma que as mudanças climáticas seguem mais rápido do que se esperava. “Hoje, estamos no cenário 2040 ou acima, nos 1,5 graus do IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas], cuja meta era apenas para 2100″, concluiu.
“É tarde, mas não é tarde demais. A gente não precisa necessariamente de estudos, o que a gente precisa é que iniciativas como o PAC [Programa de Aceleração do Crescimento], que hoje quer alocar R$ 1,7 trilhão em obras, sejam adaptadas. É menos estudo e mais regulação, mais decisão, mais ação.”
Para a pesquisadora, é importante olhar para as estruturas críticas nacionais — como estradas, hidroelétricas, reservatórios — e avaliar como elas podem ser aprimorados para resistir às mudanças climáticas.
“É importante que esses recursos [do PAC] sejam investidos em projetos que estão adaptados para o clima que já mudou, e não para o clima que não existe mais”, conclui.
O R7 questionou e aguarda resposta do governo sobre os aspectos das obras do PAC e se elas levam em conta as mudanças climáticas. O espaço permanece aberto.