Governo cogita medida provisória, mas especialistas propõem regular empresas por aplicativo via lei
Uber, 99, ifood e Rappi estão entre as plataformas; caminho legal permitiria debate com cuidado e amplitude entre setores afetados
Brasília|Ana Isabel Mansur, do R7, em Brasília
O governo federal não descarta a possibilidade de tratar da regulamentação das empresas prestadoras de serviço por aplicativo no Brasil por meio de uma medida provisória (MP), mas especialistas consultados pelo R7 defendem a normatização via lei.
O caminho legal permitiria que o assunto fosse debatido com cuidado, profundidade e amplitude entre os setores afetados. Entre as plataformas estão Uber, 99, ifood e Rappi.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) defende a regulamentação da prestação de serviço, sobretudo para resguardar os direitos dos trabalhadores. A ideia do governo federal é apresentar uma proposta ainda neste ano.
Questionado pelo R7 sobre quando isso deve ocorrer, o Ministério do Trabalho e Emprego afirmou que a discussão interna deve ser concluída em até três meses. "Neste momento, o grupo de trabalho criado para debater o tema está em fase de organização interna e início das discussões. O prazo estimado é 90 dias para a conclusão dos trabalhos e a apresentação da proposta sobre o assunto", escreveu a pasta, em nota.
Apesar de não haver definição acerca dos tópicos da matéria, algumas declarações recentes de Lula e do ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, dão mostras de como a regulamentação deve ser feita.
Durante almoço da Frente Parlamentar do Empreendedorismo, na terça-feira (7), o ministro reforçou a importância do arcabouço legal.
Queremos garantias de proteção social aos trabalhadores%2C a valorização do trabalho. Tem de ter regras e controle%2C para não ter excesso de jornada.
Dias antes, Lula afirmou que "as empresas de aplicativo exploram o trabalhador como jamais em outro momento da história" e destacou a importância de entidades de classe para esses trabalhadores.
Aqui no Brasil temos uma imensa maioria de trabalhadores que são intermitentes%2C temporários%2C que não conhecem o seu empregador%2C que nem sequer têm onde reclamar quando alguma desgraça acontece.
Modelos
Se a medida provisória for o caminho escolhido pelo governo federal, o debate a respeito do tema poderia ser atropelado, na avaliação de especialistas. "Não me parece que se trata de matéria que tenha a urgência e relevância que justifique a criação de uma medida provisória", afirma o advogado trabalhista Camilo Onoda Caldas.
Para o especialista, nesse cenário, haveria possibilidade de insegurança jurídica, mesmo se a MP fosse aprovada.
Seguramente%2C não teríamos tempo hábil durante a tramitação para conseguir analisar esse tema%2C bastante complexo%2C com o devido cuidado. Todos os agentes envolvidos precisam ser escutados%2C e isso demanda um prazo mais longo de tramitação da lei.
A falta de confiabilidade também é lembrada pelo advogado trabalhista Tomaz Nina. "Pretender legislar por meio de medida provisória seria um tiro no pé, pois iria gerar insegurança jurídica, afetando a própria atuação das empresas no país", opina.
"Um projeto de lei, com audiências públicas, seria mais democrático e participativo", acrescenta o também advogado trabalhista Maurício Corrêa da Veiga.
Vínculos de trabalho
Eventuais mudanças nas relações entre as empresas e os trabalhadores, porém, podem não ter o resultado esperado, conforme ressalta Tomaz Nina. "Certamente, a alteração legislativa seria uma ducha de água fria nas pretensões de empresas desse segmento se estabelecerem no Brasil definitivamente."
A dinâmica de trabalho dessas empresas%2C no meu sentir%2C não permite%2C nem por hipótese%2C o reconhecimento de vínculo de emprego%2C pois falta o elemento indispensável para a configuração da relação empregatícia%2C a subordinação jurídica.
Nina afirma ainda que o reconhecimento de vínculo empregatício pode levar à saída das firmas do Brasil. "As empresas movimentam o mercado de trabalho, estabelecendo dinamismo para a prestação de serviço. Ao reconhecer a relação de emprego, o custo operacional poderia inviabilizar a atuação delas no Brasil, já que haveria aumento significativo do valor agregado ao serviço prestado, com incidência de encargos previdenciários, criação de direitos e deveres trabalhistas e questões afetas à saúde e à segurança do trabalhador", lista.
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Maurício Corrêa da Veiga, contudo, vê possibilidade de a regulamentação trazer relações alternativas entre empresas e trabalhadores. "Não precisa ter contrato trabalhista, mas, sim, um contrato de prestação de serviços com garantias mínimas. Não há como regular essas relações com os antigos conceitos de direito do trabalho, razão pela qual se faz necessária uma abertura para o estabelecimento de novos caminhos de regulamentação para uma nova realidade", argumenta.
É justamente na via auxiliar de relações que Camilo Onoda Caldas aposta. "O mais comum é a defesa de uma forma de regulamentação alternativa que não seja exatamente aquela prevista para os trabalhadores celetistas tradicionais, mas que possa garantir alguns direitos, sobretudo aqueles relacionados à proteção da vida e saúde, uma vez que o trabalho expõe o entregador a riscos, principalmente quando feito com motos, que é o mais comum", afirma o especialista.
Ampla discussão
Na avaliação do mestre em direito das relações sociais e trabalhistas, Washington Barbosa, a questão dos trabalhadores autônomos em plataformas digitais deve ser fruto de ampla discussão.
"Já existem vários movimentos que tentam regulamentar — em especial na Europa —, mas a tônica sempre tem de ser uma regulamentação flexível, que garanta a livre negociação entre as partes", afirma.
"Nós estamos falando de uma forma moderna de trabalho com o uso de tecnologia. São, praticamente, microempreendedores se relacionando com outras empresas. Não podemos considerar para isso a mesma forma do contrato de trabalho formal", defende, e diz que não deve haver penalidades para o trabalhador em caso de indisponibilidade.