‘Não pule a infância’: campanha alerta sobre 1,8 milhão de vítimas de trabalho infantil
Do total, 66% são negros. Estudantes que deixam a escola são 3% entre os que não trabalham e 14% entre vítimas do labor precoce
Cidades|Guilherme Padin, do R7
Um mês atrás, a morte de Claudemir Kauã Queiroz, adolescente atropelado na noite de 10 de fevereiro por um empresário com sinais de embriaguez e CNH vencida, que tentou fugir, foi a face mais brutal de um grave problema do Brasil: 1,8 milhão de crianças e adolescentes estão em situação de trabalho infantil no país, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Devido à subnotificação, o número pode ser ainda maior.
Aos 17 anos, Kauã trabalhava como entregador do aplicativo Rappi para ajudar a sustentar a família e criar Richard, seu filho recém-nascido. O jovem foi levado ao hospital, mas não resistiu. “Agora quero saber o que vai ser do meu neto de agora em diante, sem o pai dele. Ele era apaixonado pelo filho”, disse Helaine Ribeiro, mãe da vítima, à Record TV.
De acordo com os números do IBGE, mais de 1,3 milhão de adolescentes entre 14 a 17 anos, assim como Kauã, trabalham no país, e cerca de 500 mil têm até 13 anos.
A campanha “Não pule a infância”, lançada pelo MPT (Ministério Público do Trabalho) no fim de fevereiro, reforça o debate sobre quais são as condições enfrentadas por essas crianças e adolescentes – na maioria negras (66%) e de baixa renda. O intuito da ação, destaca o órgão, é conscientizar o país de que “o lugar da criança é na escola, no esporte, no lazer, na convivência familiar e comunitária”.
“Só teremos um projeto de nação justo e igualitário quando erradicarmos o trabalho infantil. Enquanto ainda tivermos uma criança em situação de violação de direitos, no trabalho infantil, não seremos uma sociedade verdadeiramente democrática, justa e fraterna. E somos todos responsáveis por isso”, afirma Ana Maria Villa Real, coordenadora nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente do MPT, à reportagem do R7.
Somente em 2021, considerado o Ano Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil, foram instaurados 1.807 inquéritos civis, 264 ações judiciais e 664 TACs (Termos de Compromisso de Ajuste de Conduta) no âmbito do combate ao trabalho infantil no Brasil.
Não é a criança que tem que ajudar a família a sobreviver%2C mas o Estado%2C para permitir que a criança continue na escola para romper com o ciclo da pobreza
Além de afastar as crianças e adolescentes da escola – a evasão escolar sobe de 3,4% entre os que não trabalham para 13,9% entre vítimas do labor precoce, segundo o IBGE – e prejudicar o rendimento das que permanecem estudando, o trabalho infantil é “uma porta de entrada para outras violações”, atesta Villa Real.
“Quando se depara com um adolescente que cometeu um ato infracional, se você investigar, muitas vezes você vai ver que ele começou a trabalhar na rua, acabou se envolvendo com drogas ou trabalhando com o tráfico de drogas. O trabalho não é a prevenção do ingresso do adolescente no mundo da infracionalidade, mas uma porta de entrada a ele”, diz ela, ao ressaltar os riscos enfrentados por crianças e adolescentes precocemente inseridos em atividades laborais.
Crianças e adolescentes que trabalham na rua, prossegue a coordenadora do MPT, são cooptadas não só para o tráfico de drogas, mas também para o trabalho sexual. Sem entrar nos números do IBGE, os casos que envolvem exploração sexual e tráfico, por exemplo, sugerem que as vítimas de trabalho infantil certamente sejam mais de 1,8 milhão, pondera Villa Real.
Em situação de vulnerabilidade, crianças e adolescentes estão expostos à exploração sexual, ao tráfico e a acidentes de trabalho, que podem lhes causar até a morte, como o caso de Kauã Queiroz.
“Também acompanhamos o caso de um adolescente de Marajó, no Pará, que trabalhava com o pai em uma serralheria e, quando foi cortar a madeira, a serra elétrica caiu e partiu o corpo dele ao meio”, afirma.
Segundo ela, é necessário conscientizar a sociedade de que nem mesmo trabalhando com a família a criança está protegida.
“Conseguimos compreender essa visão quando é uma família de baixa renda, castigada pela pobreza e miséria. Mas na classe média e nas classes abastadas há esse olhar classista e racista, no sentido de achar que criança pobre tem que ter aquele destino, quando na verdade a criança tem direitos, e temos que promover esses direitos, que a Constituição lhes garante. A sociedade precisa exercer seu papel de promotora dos direitos das crianças e adolescentes do país”, conclui.
Desafios
No combate ao trabalho infantil, o MPT encontra dificuldades e desafios em diversas frentes, comenta Villa Real, ao listar alguns dos principais, como a falta de controle social e de exigência das pessoas.
“Por desconhecimento e uma visão classista e racista, muitos entendem que o trabalho infantil é uma saída para prevenir outras violações, como roubar e se drogar. É como dizer que, para algumas infâncias – periféricas, negras e pobres –, só há esses dois caminhos: trabalhar ou entrar no mundo das infrações, quando na verdade o caminho que precisamos é uma escola integral para todos, atividades relacionadas à cultura, esporte e lazer que funcionem e acolham essas crianças e adolescentes, promovendo seu desenvolvimento integral”, afirma.
Como o trabalho infantil possui origens na escravidão e na exploração da mão de obra negra do Brasil colônia – “no pós-abolição não houve políticas públicas de inclusão das populações negras”, pondera –, o racismo é outro obstáculo. “O trabalho infantil tem cor no país: 66% das vítimas de trabalho infantil são crianças e adolescentes negros”, diz a coordenadora.
No âmbito político se encontram ainda mais problemas. Villa Real cita a não priorização do governo federal ao combate ao trabalho infantil, além da desvalorização de políticas públicas, como o Peti (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), programa intersetorial de transferência de renda e trabalho social com crianças e famílias, bem como o enfraquecimento do investimento nas políticas de assistência social.
Previsto na lei do Suas (Sistema Único de Assistência Social), o Peti chegou a ser cofinanciado pelo governo federal durante anos, para subsidiar e estimular as ações estratégicas dos municípios com maior incidência do trabalho infantil. Com o fim do cofinanciamento entre 2020 e 2021, e sem previsão de uma nova pactuação federal, afirma Villa Real, muitos municípios deixaram de implementá-lo.
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“Esses programas impactam o trabalho infantil. Hoje assistentes sociais têm um orçamento quase 70% menor para suas necessidades, o que quer dizer que serviços de proteção básica fecharão, e isso impacta o combate ao trabalho infantil”, diz.
Outro ponto central, pondera a coordenadora, é a falta de conscientização no momento de votar em parlamentares que tenham compromisso com pautas como a educação, a infância e o combate ao trabalho infantil.
“Além disso, ainda há essa visão de que, para a criança pobre e negra, o trabalho infantil é uma solução. Vemos alegações preconceituosas como ‘melhor trabalhar que roubar ou se drogar’ e ‘afinal, como essa criança vai sobreviver?’, como se essa também não fosse função do Estado”, prossegue Villa Real.
“Não é a criança que tem que ajudar a família a sobreviver, mas o Estado, para permitir que a criança continue na escola para romper com o ciclo da pobreza”, afirma.
Por fim, segundo a procuradora do trabalho, um dos maiores desafios passa pela conscientização da sociedade em geral e do papel social das empresas.
“Tentamos trabalhar muito na conscientização, inclusive com os próprios pais, de que crianças e adolescentes têm direitos fundamentais: a uma infância digna, sadia, saudável, a uma infância plena para se tornarem adultos plenos e exercerem sua cidadania”, diz Villa Real.
Enquanto ainda tivermos uma criança em situação de violação de direitos%2C de trabalho infantil%2C nós não seremos uma sociedade verdadeiramente democrática%2C justa e fraterna
Ela relembra que 78% das vítimas de trabalho infantil têm de 14 a 17 anos, faixa em que os adolescentes podem atuar como aprendizes, enfatizando a responsabilidade das empresas de colaborar com o combate ao labor ilegal desses jovens.
“Há uma dificuldade das empresas de cumprir as cotas de aprendizagem, fazer a inserção da adolescência na aprendizagem profissional como forma de prevenir do trabalho infantil; o papel social das empresas é muito importante. Temos 1,3 milhão de adolescentes nessa faixa em situação de trabalho infantil, que poderiam estar em programas de aprendizagem profissional, hoje com pouco mais da metade de suas vagas preenchidas”, diz. Até o fim do ano passado, de mais de 880 mil vagas disponibilizadas, o país tinha cerca de 461 mil aprendizes com o vínculo ativo.
Crianças e adolescentes negros são 66% das vítimas de trabalho infantil
O racismo é também um fator estruturante no trabalho infantil, ressalta a coordenadora do MPT. Se 54% da população brasileira é preta ou parda, a diferença é desproporcional, aumenta entre as crianças e adolescentes que trabalham: de 1,8 milhão de vítimas, 66% – ou 1,2 milhão, aproximadamente – são negras.
Villa Real aponta dois fatores determinantes que atrapalham o combate ao labor infantil e ao racismo que o atravessa. O primeiro é que, na política, a maioria é formada por pessoas brancas.
“Quem está dentro dos centros decisórios e formula políticas públicas, como parlamentos e governos, são pessoas brancas. Os negros historicamente são fragilizados e subjugados pela condição de miséria e ausência de políticas públicas do Estado, que precisa superar o racismo. Nesse sentido, quem está na condição de lutar mais pela promoção de direitos é a população branca, justamente por estar nos centros decisórios e de poder”, afirma.
Além disso, a própria visão da sociedade a respeito do trabalho infantil – “racista, elitista e preconceituosa”, repete Villa Real – também se impõe nesse sentido.
“Aí entra o racismo estrutural: achar que uma criança por ser preta, periférica ou pobre só tem esses dois caminhos [trabalho ou ilegalidade] é um preconceito. Pensar que só pelo fato de ser pobre ou estar ociosa na rua aquela criança é um criminoso em potencial é criminalizar a pobreza, e essa visão racista ainda prevalece”, diz ela.
Villa Real divide um relato em particular, em que, ao conversar com parlamentares durante discussões sobre a PEC 18 (proposta para permitir o trabalho sob o regime de tempo parcial a partir dos 14 anos), se deparou com opiniões favoráveis à proposta que esbarravam nos preconceitos que descreve.
“Esse pensamento é condenar realmente numa visão classista e racista as crianças pobres e pretas a ficar presas ao ciclo da pobreza, a não se desenvolver, não crescer, a não ter direitos a uma família digna, como se o Estado não tivesse que garantir a comida, a sobrevivência. Por que não tem mais escolas integrais, serviços de cultura e esporte para todos?”, questiona.
Trabalho infantil no Brasil – Dados gerais
Segundo o último levantamento da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), realizado em 2019, 1,8 milhão de crianças e adolescentes estão em situação de trabalho infantil no Brasil. O número representa 4,6% do total de brasileiros de 5 a 17 anos.
Do total, 66,1% (ou 1,18 milhão) são pretos ou pardos.
O estudo também mostra que, com o trabalho infantil, aumenta a probabilidade de as crianças e adolescentes abandonarem os estudos. A evasão escolar vai de 3,4%, entre quem não trabalha, para 13,9%, entre as vítimas do labor.
No ano passado, foram instaurados 1.807 inquéritos civis, 264 ações judiciais e 664 TACs (Termos de Compromisso de Ajuste de Conduta) no âmbito do combate ao trabalho infantil no Brasil.