'Tentaram nos matar', diz a primeira testemunha do caso Kiss
Ex-funcionária teve 40% do corpo queimado e diz esperar condenação de réus pelo Tribunal do Júri em Porto Alegre
Cidades|Fabíola Perez, do R7, em Porto Alegre (RS)
Primeira testemunha ouvida no julgamento do caso da boate Kiss, a ex-funcionária Kátia Siqueira afirmou nesta quarta-feira (1º) esperar que os quatro réus acusados pela morte de 242 pessoas no incêndio ocorrido em 2013 sejam condenados. “Com tudo isso que eles fizeram, tentaram matar a gente”, disse ela no plenário, em afirmação à promotora Lúcia Helena Callegari.
O julgamento começou pela manhã, quase nove anos após a tragédia ocorrida em Santa Maria (RS). O Tribunal do Júri, que ocorre no Foro Central I de Porto Alegre, decidirá sobre a culpabilidade ou não dos ex-sócios da boate, Elissandro Spohr e Mauro Londero Hoffmann, bem como dos músicos Luciano Bonilha e Marcelo de Jesus dos Santos.
O depoimento de Kátia começou às 14h15. A funcionária afirmou que, à época, trabalhava na cozinha e no bar da casa noturna. “Trabalhei lá por seis meses, de duas a três vezes por semana, às quintas, sextas e sábados”, disse ela. “Algumas vezes não tinha muito movimento, eram cerca de 300 pessoas, outras vezes não dava nem para circular lá dentro. Na época, eles trabalhavam com comanda. Eles comentavam quantas pessoas tinham entrado.”
Leia também
Um dos momentos mais marcantes do depoimento de Kátia foi quando o juiz perguntou à testemunha se ela havia tido algum problema físico ou psicológico decorrente do incêndio. “Queimei 40% do corpo”, afirmou Kátia. “Minha mãe trocava o canal da televisão para não me afetar. Depois de 46 dias, tive alta do hospital. Fiz cinco cirurgias de enxerto com pele de outras pessoas e com a minha própria pele. Depois comecei a fazer as cirurgias reparativas”, disse ela, que chegou a tomar morfina para amenizar a dor.
Kátia contou ainda que conhecia cerca de 50 pessoas, entre funcionários e amigos, que estavam na festa na noite do dia 27 de janeiro de 2013. “Tinha só uma saída. Tinha as barras, em toda a boate, para fazer a divisão dos setores. A barra de contenção era para manter a ordem na saída, para fazer o pagamento. Na hora do desespero, as pessoas acabaram sendo esmagadas.”
A luz apagou
Na noite do dia 27, segundo Kátia, havia muitas pessoas na casa noturna. “Uma amiga minha tinha chegado à festa, e eu disse a ela que quando diminuísse o movimento eu iria falar com ela, só que não deu tempo. Ela faleceu”, afirmou. “Estava cheio, eu não parei um minuto. Eram festas de turmas de faculdade. Normalmente essas festas enchem.”
Kátia disse que estava na cozinha no momento em que o incêndio começou. Foi quando ela ouviu os primeiros gritos. “Eu estava na cozinha, a luz caiu, escutava gente gritando ‘fogo’, escutava gente gritando ‘abrigo’. Tentei sair e, como tinha gente empurrando, acabei desmaiando lá dentro. Me colocaram na viatura da Brigada Civil", relata. Ela contou que sentiu falta de ar e que "apagou", tendo acordado no hospital, em Porto Alegre, 21 dias depois.
A ex-funcionária contou ainda que a boate chegou a passar por duas reformas no período em que ela trabalhou no local. “Uma delas para elevação do piso, e a outra para elevação do palco. A última reforma tinha acontecido na semana anterior, tinha clientes que reclamavam do andar de baixo. Eles estavam sempre arrumando alguma coisa.”
Grávida, Kátia disse ao juiz que temia pelo momento de dar seu depoimento no julgamento por ter de relembrar os detalhes da tragédia. “Logo que saí do hospital, fiz tratamento psicológico e psiquiátrico. Quando eles me perguntavam do acidente, eu começava a chorar, sentia que estava regredindo, tinha crise de choro”, afirmou. “Coloquei na cabeça que eu não iria mais pensar no assunto. Tentava não falar mais no assunto. O que me preocupou foi ter de vir testemunhar. Estou mais preocupada com a minha filha, que está sentindo todo o meu sofrimento.”
Defesa dos acusados
Questionada por um dos advogados de defesa de Elissandro Spohr, Leonardo Santiago, sobre como havia sido retirada da boate, Kátia disse que não se recordava, uma vez que desmaiara com o início do incêndio. Santiago disse que ela teria sido retirada da boate por Elissandro Spohr, conhecido como Kiko.
“Quem tirou a senhora de dentro da boate foi o Kiko. Natália, esposa do Kiko, disse em depoimento em 2013 que viu o Kiko retirando uma funcionária de nome Kátia. Quero lhe informar que quem tirou a senhora da boate foi o Kiko”, disse o advogado. Nesse momento, a defesa do réu foi interrompida pelo juiz, que a corrigiu: “Talvez caiba uma retificação, dizendo que 'a esposa do Kiko disse que quem tirou a senhora da boate foi o Kiko'".
Jader Marques, advogado de Elissandro Spohr que falou na sequência, questionou todas as perguntas realizadas sobre o número de pessoas na boate. Kátia chegou a dizer que havia 1.117 pessoas na boate. Entretanto, Marques disse que a ex-funcionária não teria como provar o número de pessoas, já que não havia uma contagem precisa ou uma forma de controle.