Assimilação forçada: 46 crianças foram retiradas da Ucrânia e podem ser adotadas na Rússia
Ordens de Vladimir Putin indicaram que medida é parte de um plano mais amplo de retirar a cidade ucraniana das vítimas mais vulneráveis da guerra
Internacional|Yousur Al-Hlou e Masha Froliak, do The New York Times
Quando a notícia da invasão russa se espalhou pela Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022, a dra. Natalia Lukina estava em casa esperando um táxi.
Eram seis da manhã e ela estava ansiosa para chegar ao Lar das Crianças de Kherson, lar adotivo para crianças institucionalizadas com necessidades especiais, administrado pelo Estado, onde atuava como médica.
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Quando ela chegou, o estrondo da artilharia disparada pelas tropas russas que avançavam sobre a cidade de Kherson, capital da região, já reverberava pelos corredores. A médica e seus colegas cuidadores se depararam com um problema angustiante: como proteger aquelas dezenas de crianças vulneráveis.
Eram todos bebês e crianças pequenas, alguns com deficiências graves, como paralisia cerebral. Uns tinham pais vivos com guarda limitada, enquanto outros haviam sido retirados de lares problemáticos ou abandonados. “Quem mais teria ficado para trás para cuidar deles? Imagine se todos nós virássemos as costas e fôssemos embora?”, disse Lukina sobre sua decisão de ficar com as crianças.
Olena Korniyenko, diretora do lar adotivo e tutora legal das crianças, preparara bolsas de emergência para elas duas semanas antes e abastecera o lar com caixas de comida, água e fraldas. Mas o prédio não estava equipado para resistir a tiros ou bombardeios, e a polícia já havia deixado a cidade. Diante disso, Korniyenko procurou na internet um mapa de abrigos antiaéreos próximos e encontrou um bem perto de lá.
Em meio a tiroteios, a equipe carregou as crianças e seus colchões, a pé e de carrinho, para um porão de concreto, levando consigo alimentos, remédios, bombas elétricas e sondas de alimentação para os pequenos mais doentes.
Um pastor local ficou sabendo da situação deles mais tarde naquele dia e pediu à equipe do lar adotivo que levasse as crianças para sua igreja. Assim, a equipe transferiu as crianças novamente, levando-as para um esconderijo no subsolo da Igreja Holhofa.
Uma enfermeira, Kateryna Sirodchuk, contou que eles temiam que as forças russas levassem as crianças embora.
E seus temores logo se tornaram realidade: em 25 de abril de 2022, as autoridades russas encontraram as crianças e se apossaram delas, levando-as para um local a 290 quilômetros de distância.
As provas mostram que a transferência foi parte de uma campanha mais ampla e sistemática do presidente russo Vladimir Putin e de seus aliados políticos para privar de sua identidade ucraniana as vítimas mais vulneráveis da guerra. O “The New York Times” analisou publicações russas nas redes sociais, obtendo fotos, vídeos, mensagens de texto e documentos, além de ter entrevistado mais de 110 cuidadores, especialistas jurídicos e autoridades russas e ucranianas para rastrear a vida e a movimentação das crianças quando elas foram levadas sob custódia russa.
O que aconteceu com elas em seguida, segundo especialistas jurídicos, pode ser considerado um crime de guerra.
Duas semanas depois da invasão, a comissária russa para os direitos das crianças, Maria Lvova-Belova, sentou-se em frente a Putin em uma reunião televisionada para pedir sua ajuda. Ela queria reassentar as crianças ucranianas das creches, que haviam ficado presas no fogo cruzado da guerra. Ele prometeu remover qualquer “burocracia” legal para que as crianças pudessem ser entregues permanentemente a famílias russas.
Ao longo de semanas, autoridades e policiais ucranianos se esforçaram para encontrar uma maneira de evacuar as crianças da Igreja de Holhofa, que na época era território ocupado.
Em abril, um comissário ucraniano fez um apelo no Telegram, pedindo ajuda para resgatá-las. Horas depois, homens armados liderados por um oficial russo que se autodenominava “Navegador” apareceram na igreja e exigiram que as crianças fossem devolvidas ao Lar das Crianças de Kherson. Câmeras de uma agência de propaganda sediada na Crimeia filmaram sua chegada, e a matéria resultante acusava as autoridades ucranianas de sequestrar as crianças.
O pastor protestou, alegando que as crianças estavam mais seguras em seu porão. Mas os cuidadores não tiveram outra escolha a não ser obedecer às ordens e levar as crianças de volta para o lar adotivo na cidade de Kherson, onde as forças de ocupação tinham um controle mais rígido.
Na primavera de 2022, a ocupação de Kherson havia se tornado um modelo para a assimilação forçada de uma cidade ucraniana e seus moradores: um novo governo de ocupação foi nomeado em Kherson, e uma bandeira russa foi hasteada do lado de fora do lar adotivo.
Nos meses seguintes, as autoridades russas documentaram seus esforços para ajudar as crianças em seus populares canais no Telegram.
O “Navegador”, aquele homem que havia ordenado que as crianças fossem retiradas da igreja, visitou o lar adotivo várias vezes. Mais tarde, ele seria identificado como Igor Kastyukevich, membro do parlamento russo, que pertence ao partido político de Putin, o Rússia Unida.
Ordem presidencial
Em maio daquele ano, Putin cumpriu sua promessa a Lvova-Belova, emitindo um decreto presidencial que facilitava as exigências de cidadania: em Kherson e em outras regiões ocupadas, os cuidadores ucranianos agora podiam solicitar a cidadania russa em nome de crianças adotivas e órfãs ucranianas. O decreto também acelerou o processo para que as crianças pudessem se tornar cidadãs russas em 90 dias ou menos.
No mês seguinte, Korniyenko foi convocada ao Ministério da Saúde de Kherson, agora administrado pelas autoridades de ocupação. Um funcionário apoiado pela Rússia lhe pediu que continuasse como diretora, só que sob sua supervisão. Mas Korniyenko se recusou. Lukina também se demitiu.
Em busca de um novo diretor, as autoridades de ocupação recorreram à dra. Tetiana Zavalska, pediatra do lar adotivo. Ela simpatizava com a nova administração da ocupação e deixou claras suas opiniões de apoio à Rússia.
Zavalska incentivou as autoridades de ocupação a registrar formalmente o lar adotivo, o que foi feito ainda naquele mês.
Em agosto daquele ano, a rede de televisão estatal russa RT exibiu uma matéria que comemorava a ocupação de Kherson e apresentava o lar adotivo, agora considerado uma entidade legal.
Quando Kherson e três outras regiões foram anexadas ilegalmente por Putin, forças ucranianas iniciaram uma campanha militar para retomar a cidade.
Autoridades russas elaboraram um plano para as crianças do lar adotivo. Em um bate-papo on-line privado para estudantes de medicina, as autoridades de saúde da Crimeia, ocupada pela Rússia, recrutaram voluntários para ajudar a transferi-las.
A enfermeira Natalia Kibkalo tinha acabado de colocar quase uma dúzia de crianças na cama, todas doentes com covid-19, quando recebeu a notícia: elas seriam removidas pela manhã.
Na manhã seguinte, 21 de outubro, ela trocou fraldas e alimentou as crianças. Mas, como não conseguia suportar a ideia de ajudar a mandá-las embora, pegou um táxi para casa.
Por volta das oito horas da manhã, ambulâncias e ônibus brancos chegaram ao lar adotivo. O grupo incluía Kastyukevich, o chamado “Navegador”, bem como o ministro da saúde da Crimeia na época, seu vice, os estudantes voluntários e vários administradores de outro lar adotivo que acabariam se tornando os novos cuidadores das crianças. Zavalska reuniu os documentos legais e o registro médico delas.
Do lado de fora, Kastyukevich segurava uma criança em seus braços e a beijava antes de passá-la adiante, enquanto o nome de cada uma das 46 crianças era chamado. Em seguida, foram levadas para os ônibus e as ambulâncias que as aguardavam.
O comboio deixou o lar adotivo no fim da manhã, e chegou ao seu destino naquela noite.
Pelo menos um casal de pais afirmou que só descobriu que seus filhos estavam na Crimeia quando jornalistas do “Times” os visitaram em Kherson seis meses depois, embora os documentos mostrassem que as autoridades russas tinham o nome e o endereço deles.
Seus filhos, Mykola, que tinha autismo, e Anastasiya Volodin, que tinha paralisia cerebral, tinham sido colocados sob custódia do Estado anos atrás, depois que o casal foi considerado incapaz de cuidar deles. Os tribunais ucranianos ainda não haviam se pronunciado sobre seus direitos parentais. “Não vou permitir que ninguém os adote”, disse o pai, Roman Volodin.
No inverno setentrional de 2022, os novos cuidadores e Zavalska, nomeada responsável legal, tomaram medidas para integrar as crianças formalmente na sociedade russa, embora os pais biológicos de algumas delas estivessem na Ucrânia e ainda tivessem direitos legais ou fossem conhecidos pelas autoridades russas.
Primeiro, os cuidadores solicitaram certidão de nascimento da Rússia para as crianças e traduziram o nome delas para o idioma desse país. Então providenciaram números de seguridade social russos para elas, alegando ser um requisito para que recebessem atendimento médico. Os novos documentos foram acidentalmente revelados por funcionários nomeados pela Rússia em um post do Telegram.
No fim, as crianças receberam a cidadania russa, a última etapa necessária para qualificá-las para adoção e colocação permanente em famílias russas.
Possível crime de guerra
Especialistas jurídicos afirmaram que os novos documentos revelaram a intenção das autoridades russas de privar as crianças de sua identidade ucraniana, violando a Convenção sobre os Direitos da Criança. Isso também pode ser considerado um crime de guerra.
No aniversário da guerra, Putin concedeu prêmios presidenciais de Estado a dois oficiais da Crimeia que ajudaram a orquestrar a transferência das crianças de Kherson.
No dia seguinte, porém, o promotor-chefe do Tribunal Penal Internacional emitiu mandados de prisão para Putin e seu comissário de direitos infantis, acusando-os de retirar “ilegalmente” “pelo menos centenas de crianças” de lares de crianças na Ucrânia.
Sete das crianças do Lar de Crianças de Kherson retornaram à Ucrânia com a ajuda das autoridades ucranianas e de mediadores terceirizados do Catar. Entre elas estão Anastasiya e Mykola Volodin, cuja mãe foi a Moscou em fevereiro para buscá-las.
Anastasiya acabou morrendo em um hospital ucraniano poucas semanas depois de seu sexto aniversário. Um médico atribuiu sua morte a um ataque epilético. As autoridades ucranianas retomaram os cuidados com Mykola enquanto um tribunal determina se seus pais têm condições de ser seus responsáveis legais.
Até o momento, o restante das crianças de Kherson permanece sob custódia russa.
c. 2024 The New York Times Company