Um novo estudo conduzido por pesquisadores da USP e da Smithsonian Institution revelou descobertas surpreendentes sobre a musculatura craniana do celacanto africano, um peixe considerado como “fóssil vivo”, já que sua anatomia mudou muito pouco nos últimos 65 milhões de anos. A pesquisa, publicada na revista Science Advances, mostrou que apenas 13% das inovações musculares previamente atribuídas às grandes linhagens de vertebrados estavam corretas, enquanto outras nove transformações evolutivas foram identificadas.O celacanto, que pertence ao grupo dos sarcopterígeos, demonstrou ter mais semelhanças com peixes cartilaginosos e tetrápodes do que se pensava anteriormente, sendo ainda mais diferente dos peixes de nadadeira raiada, como as carpas. O estudo corrigiu interpretações erradas sobre certos músculos envolvidos na alimentação e respiração, revelando que estruturas tidas como músculos eram, na verdade, ligamentos, incapazes de realizar contração.Essa nova visão impacta diretamente a forma como se entende a evolução das estratégias alimentares entre os vertebrados. Os peixes de nadadeira raiada, por exemplo, desenvolveram um mecanismo de sucção altamente eficiente, enquanto celacantos e tubarões utilizam mordidas para capturar presas. A descoberta de que os celacantos não possuem o conjunto muscular que permite a sucção mostra que essa inovação surgiu mais tarde na evolução, exclusivamente entre os actinopterígeos.O estudo também lança luz sobre as separações evolutivas ocorridas há cerca de 420 milhões de anos, entre os peixes de nadadeira raiada e os de nadadeira lobada. Este último grupo, ao qual pertencem os celacantos, também inclui os peixes pulmonados e todos os tetrápodes, que evoluíram de um ancestral aquático. A reavaliação da anatomia craniana do celacanto oferece novas pistas sobre essa transição evolutiva.A obtenção dos exemplares de celacanto foi um desafio devido à raridade desses animais, que vivem a cerca de 300 metros de profundidade e passaram a maior parte da história conhecida apenas por fósseis. Dois museus norte-americanos cederam exemplares para dissecção, permitindo uma análise detalhada liderada pelo professor Aléssio Datovo. A iniciativa contou com a colaboração de G. David Johnson, um famoso anatomista que morreu em 2024, durante a revisão do estudo.Datovo explica que a dissecção cuidadosa permite preservar as estruturas anatômicas para futuros estudos. Ele levou seis meses para separar músculos e ossos da cabeça do celacanto, gerando um acervo que agora pode ser utilizado por outros cientistas. A análise detalhada permitiu corrigir erros históricos e identificar estruturas jamais descritas na literatura científica.O impacto dessas correções é significativo, já que muitos erros sobre a musculatura craniana se perpetuaram por mais de 70 anos. A substituição de músculos por ligamentos em descrições anteriores altera profundamente a compreensão de como os celacantos se alimentam e respiram. Isso tem implicações para toda a árvore evolutiva dos vertebrados, já que o celacanto ocupa uma posição crucial na reconstrução dessa história.Para aprofundar a análise, os pesquisadores utilizaram imagens de microtomografia em 3D de crânios de outras linhagens de peixes, incluindo grupos extintos. Com isso, puderam traçar a provável evolução dos músculos analisados, desde os primeiros vertebrados com mandíbula até os atuais tetrápodes. Datovo planeja investigar em estudos futuros as semelhanças desses músculos com os de anfíbios e répteis.