‘Nossa nação não está bem’: eleitores dos EUA temem o que virá a seguir
Clima tenso e divisivo no país se acirrou após o atentado sofrido por Donald Trump
Internacional|Emily Cochrane, Shawn Hubler, Rick Rojas, Kurt Streeter e Amy Qin, do The New York Times
“Nunca vi um buraco de rua que fosse republicano ou democrata, nem um playground republicano ou democrata, nem um incêndio republicano ou democrata que o corpo de bombeiros precise apagar.” Era o que dizia aos seus eleitores Bob Dandoy, o prefeito de Butler, na Pensilvânia, professor de inglês aposentado do ensino médio.
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Dandoy, de 71 anos, pensava em sua cidade como um lugar onde aprendeu a trabalhar manejando as diferentes correntes partidárias. Ele é democrata, e a prefeitura é um reduto republicano. Toda a sua campanha sempre foi articulada com base no consenso. Até que houve o sábado em que Butler se tornou um cenário chocante para a fúria política do país.
Nesse dia, Dandoy estava jantando com sua família quando um membro da Câmara Municipal mandou uma mensagem dizendo que um espectador morrera no comício de campanha de Donald Trump no recinto de exposição agrícola e que outros dois tinham ficado gravemente feridos. A orelha direita do ex-presidente fora atingida de raspão por uma bala. O atirador, jovem tímido e isolado, de 20 anos, munido de um rifle semiautomático AR-15, foi morto a tiros pelo Serviço Secreto. Tudo isso na pacata cidade de cerca de 13 mil habitantes onde Dandoy viveu toda a vida.
Desde então, a discórdia nacional tomou conta de Butler com tanta força que esta semana o site da cidade na internet caiu. E-mails acusavam a prefeitura de não ter protegido Trump, sugerindo que talvez até quisesse que ele fosse um alvo. Várias pessoas também ligaram exigindo que a cidade admitisse que os apoiadores de Trump encenaram o tiroteio. O prefeito tentou lembrar a todos que Butler é uma comunidade que faz coisas boas, que já superou divergências em conjunto. Mas não adiantou muito, disse ele, o incidente foi um trauma avassalador: “As pessoas estão em estado de choque. E não posso usar um lugar-comum ou fazer um discurso dizendo que está tudo bem.”
Momento desconfortável
À medida que as eleições presidenciais de 2024 se aproximam, o desconforto não se limita a Butler. Em entrevistas desde a Costa Oeste até o extremo Sul, os americanos de todos os partidos afirmam que estão profundamente apreensivos, e não apenas por causa do atentado de 13 de julho contra a vida de um candidato presidencial. “É como se uma nuvem negra pairasse sobre nós e simplesmente não saísse”, comentou Fredes Assunção, de 34 anos, proprietário de uma pequena empresa em Sacramento, na Califórnia.
“Já é hora de termos uma reunião do tipo ‘vinde a Jesus’”, afirmou o rev. Jamal Bryant, pastor sênior da Igreja Batista Missionária do Novo Nascimento, em Stonecrest, na Geórgia, chamando o tiroteio de um “desdobramento do código moral do país”.
Brent Leatherwood, líder do setor de políticas públicas da Convenção Batista do Sul, em Nashville, no Tennessee, disse que ouviu vários líderes religiosos conservadores desde o atentado. Todos fizeram coro com as mesmas preocupações. “Nossa nação não está bem”, declarou.
As pesquisas de âmbito nacional ainda não refletiram totalmente o tiroteio de sábado ou o apelo do presidente Joe Biden, no dia seguinte, para “baixar a temperatura de nossa política”. Nem levaram em conta a Convenção Nacional Republicana em Milwaukee, onde Trump, o candidato presidencial do Partido Republicano, nomeou o senador J. D. Vance, de Ohio, como seu companheiro de chapa. Não mediram também o impacto da mensagem de desistência de Biden de concorrer a um segundo mandato, feita no domingo, 21 de julho. Durante a Convenção, Vance, sem apresentar provas, escreveu no site de mídia social X que a retórica da campanha de Biden “levou diretamente à tentativa de assassinato do presidente Trump”.
Conselheiros da campanha de Trump afirmaram que o ex-presidente – cujo primeiro mandato começou com avisos de que poderia haver uma “carnificina americana” e terminou coroado pela insurreição de seis de janeiro – fez um apelo à unidade no discurso de 90 minutos que proferiu na convenção. No entanto, também disseram que Trump se concentrou em afirmar “o que havia feito e o que vai fazer novamente”.
Não há como não notar as profundas divisões ideológicas, culturais e partidárias da nação. As pesquisas vinham mostrando que Biden e Trump travavam uma disputa acirrada. Resta saber o que elas indicarão, agora que um novo candidato democrata entra no páreo. Nem a turbulência sobre a idade e a acuidade mental do presidente nem a condenação de Trump em 34 acusações criminais relacionadas com pagamentos de dinheiro secreto inspiraram tantas mudanças.
Quase dois terços dos adultos americanos disseram ao Centro de Pesquisa de Assuntos Públicos da Associated Press-Norc, em dezembro, que a democracia dependeria de quem ganhasse as eleições presidenciais de novembro. Oitenta e sete por cento dos democratas declararam que Trump enfraqueceria a democracia se fosse reeleito, e 82 por cento dos republicanos afirmaram o mesmo sobre Biden. Outros eleitores se mostraram irritados com as duas candidaturas. A maioria revelou ao Pew Research Center que, se pudesse, substituiria Trump e Biden, desaprovarando, também, a Suprema Corte e o Congresso.
Mesmo antes do atentado na Pensilvânia, os americanos “mal se falavam uns com os outros”, observou Timothy Naftali, historiador presidencial que leciona na Universidade Columbia, acrescentando: “Há um clima nacional instável, inquieto, incerto, irritante e ansioso desde as eleições de 2016.”
Em maio, uma pesquisa do Instituto Marista de Opinião Pública revelou que havia um desprezo tão arraigado que muitos americanos consideravam provável ou muito provável que pudessem viver uma segunda guerra civil durante sua vida.
Desde o tiroteio, líderes políticos de todo o espectro, incluindo Joe Biden e Kamala Harris, condenaram a violência política. Mas têm sido minados pela fúria partidária. “Os democratas queriam que isso acontecesse”, postou a deputada Marjorie Taylor Greene, da Geórgia. Um senador estadual do Tennessee escreveu e depois excluiu uma postagem dizendo que “o extremismo do regime Maga (Make America Great Again) nos trouxe a este momento”. No Facebook, um diretor de campanha do deputado Bennie Thompson, democrata do Mississipi, escreveu e depois excluiu: “Por favor, façam aulas de tiro.” O escritório de Thompson rejeitou veementemente essa postagem.
No Tennessee, o prefeito democrata de Nashville, Freddie O’Connell, revelou que, nos últimos dias, uma faixa de pedestres pintada com um arco-íris para homenagear a comunidade LGBTQIA+ da cidade foi desfigurada e que supremacistas brancos, agitando bandeiras nazistas, fizeram repetidas aparições na região central. E acrescentou: “Meu maior medo é que o tecido social, mesmo em nível local, continue a se deteriorar.”
Garen Wintemute, médico de pronto atendimento que dirige o Centro de Pesquisa sobre Violência com Armas de Fogo da Universidade da Califórnia, em Davis, disse que os americanos que não são extremistas precisam urgentemente se tornar mais propositivos.
Um estudo nacional, que está agora em seu terceiro ano, mostrou que, em 2022, dois terços dos americanos e, depois, três quartos, em 2023, rejeitavam a violência política, alegando que ela nunca é justificável. Mesmo entre aqueles que toleravam a violência política, uma grande maioria declarou que não a cometeria pessoalmente. Muita gente não só recua diante das lutas políticas, mas evita totalmente se envolver com política, observou Wintemute: “O americano médio tem agido como espectador de um acidente de trem, só que estamos todos dentro do trem. Se ele cair de um penhasco, cairemos também.”
Assim como qualquer comportamento pouco saudável, continuou Wintemute, a violência política pode ser dissuadida se a maioria a rejeitar explicitamente: “As decisões de uma pessoa sobre seus comportamentos de saúde são fortemente influenciadas pelo que a família, os amigos, as comunidades, os membros do clero e assim por diante dizem e fazem. Precisamos afirmar que não aceitaremos violência política, que não faremos parte disso.”
Isso vale também para os candidatos, disse Naftali, o historiador presidencial: “Para onde iremos agora vai depender de uma série de fatores. Mas, se os ciclos anteriores de violência política nos dizem alguma coisa, um desses fatores é a forma como nossos líderes – e defino isso de forma ampla – explicam a si próprios, e a nós, onde estamos e para onde vamos. E uma das vozes mais importantes será a voz da vítima.”
Naftali disse que Biden já havia feito gestos tradicionalmente apropriados, ligando para Trump para desejar uma rápida recuperação. Fez também um discurso na televisão deplorando o ataque e insistindo que “não podemos permitir que essa violência seja normalizada”.
Agora, afirmou ele, é a vez de Trump, embora a história mostre que muitas vezes este só aumenta a retórica agressiva, em vez de usar de moderação.
“Não sou ingênuo. Nem todo mundo pode ser mudado. Mas quando pensamos para onde vamos a partir daqui, temos de ter em mente que Donald Trump tem tudo nas mãos. Porque ele foi a vítima, e por causa da devoção dos seus seguidores, e porque a convenção republicana vem em primeiro lugar. Talvez sua voz venha a ser a mais forte e a mais influente na determinação da direção que o país tomará a partir deste ponto de inflexão. Às vezes, é preciso que haja uma crise para que os americanos rompam um impasse. Claro que pensei que essa crise seria a de seis de janeiro. Mas isso, obviamente, não foi o bastante”, declarou Naftali.
c. 2024 The New York Times Company