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Protestos, repressão violenta e fuga: o colapso completo do governo em Bangladesh

Mandato despótico da primeira-ministra Sheikh Hasina chegou ao fim após uma série de manifestações estudantis

Internacional|Mujib Mashal, do The New York Times


Governo de Sheikh Hasina era considerado democrático, mas se tornou autoritário Atul Loke/The New York Times

A vida e as políticas da ex-primeira-ministra Sheikh Hasina foram definidas por um trauma antigo, pessoal em seu sofrimento e nacional em seu registro.

Em 1975, o pai dela, Sheikh Mujibur Rahman, líder carismático que fundou Bangladesh, e boa parte da família foram massacrados em um golpe militar. Na época ela estava no exterior, e foi forçada a se exilar na Índia.

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Sua volta tempos depois e a ascensão ao cargo de premiê representavam a esperança do país em um futuro melhor, mais democrático. Foi aclamada como muçulmana secular que tentou controlar um Exército com queda para o golpe, peitou a militância islâmica e reformou a economia de seu país empobrecido. Com o tempo, porém, foi mudando, ficando cada vez mais autoritária, reprimindo a dissidência e revelando uma atitude com a qual tratava o país como herança sua por direito. Então, em cinco de agosto, os anos de governo despótico finalmente cobraram seu preço, e Hasina voltou ao ponto onde havia começado: depois de renunciar sob a pressão intensa de um amplo movimento de protestos, ela fugiu e novamente se exilou no exterior.

Os manifestantes, liderados pelos estudantes revoltados com a violenta repressão que sofreram com o que começou como um movimento pacífico, invadiram a residência oficial e saquearam praticamente tudo que havia ali. Não satisfeitos, vandalizaram seus retratos, destruíram as estátuas de seu pai espalhadas pela cidade e atacaram a casa e o gabinete dos membros de seu partido.


A fuga de Hasina se deu meses depois da conquista do quarto mandato consecutivo de quatro anos, com a certeza de que sua posição de poder era inabalável. Para trás, ela deixa um país mergulhado no caos e na violência que marcaram sua fundação, na qual seu pai foi peça-chave.

Em seguida à alegria imediata dos manifestantes com sua saída, começaram a surgir várias questões preocupantes. Por enquanto, a nação de 170 milhões de habitantes parece não ter liderança; os órgãos de segurança pública que mataram pelo menos 300 manifestantes estão desprestigiados; é pouco provável que o partido de Hasina e a oposição deixem as diferenças de lado tão cedo, e muitos certamente pensam em vingança por anos de repressão excessiva. Há temores também de que o traço característico da sociedade bangladesa – o da militância islâmica – ressurja no vácuo político.


“Finalmente nos livramos de um regime autocrático. Já tivemos ditadores militares, mas a déspota civil foi mais dura do que qualquer um deles”, afirmou Shahdeen Malik, famoso advogado constitucional e ativista legal na capital, Daca.

Ele contou também que, durante o primeiro mandato, no fim dos anos 90, Hasina foi um verdadeiro sopro de ar fresco: com a política nacional até então marcada por golpes, contragolpes e assassinatos, ela chegou, democrática, e seu partido procurava agir com uma postura maior de responsabilização.


Instintos sombrios

Mas, quando voltou ao poder, em 2009 – depois de uma derrota eleitoral, exílio e um atentado contra sua vida que deixou mais de 20 mortos –, parecia movida por instintos mais sombrios, enxergando nos oponentes uma extensão das forças que lhe tinham causado o trauma duradouro.

A partir daí, embarcou na missão de moldar Bangladesh de acordo com a visão do pai, que antes de ser assassinado fora acusado de tentar transformar o país em um Estado unipartidário. Parecia enxergar tudo sob esse prisma e esse vocabulário, como se nunca tivesse superado a época tão antiga.

A imagem de seu pai estava por toda parte. Enaltecia seus apoiadores como herdeiros do legado da libertação do Paquistão – de quem Bangladesh conquistou a independência – e demonizava os oponentes, classificando-os de traidores da antiga guerra. “É inegável que sofreu praticamente o trauma mais grave que há, ou seja, a morte de toda a família. Sempre sentimos essa questão pessoal refletida em suas ações políticas e atividades”, disse Malik.

Nos últimos anos, o poder de Hasina passou a se basear em dois pilares: a repressão incansável à oposição a ponto de não permitir sua mobilização, e o estabelecimento de uma rede ampla de clientelismo para protegê-la e, por tabela, aos seus interesses.

Quando questionada sobre suas táticas, ela dizia que, no passado, a oposição lhe tinha feito coisas piores, e que a simpatia pública por seus adversários tradicionais continuava limitada; entretanto, o que ficou claro foi que o verdadeiro teste a seu poder viria com uma questão trivial, além da política.

No ano passado, antes da eleição, a oposição deu sinais de estar se reagrupando, motivada pela estagnação da economia. A imagem de Hasina como arquiteta da transformação econômica nacional já tinha virado fumaça havia tempos quando a dependência excessiva da indústria têxtil ficou aparente e a desigualdade só se acentuou. O preço dos alimentos disparou e as reservas internacionais alcançaram um nível perigosamente baixo.

Mas seu governo ainda tinha fundos mínimos para garantir a sobrevivência, e ela apelou para a China e a Índia diplomática e financeiramente, como amigos para socorro em um momento de aperto. Usou o domínio que tinha sobre as forças de segurança para conter o embalo em que vinha a oposição, atolando os concorrentes em dezenas, às vezes centenas, de processos judiciais, perante juízes que controlava.

Manifestações estudantis

O protesto estudantil iniciado em julho começou por causa de uma questão relativamente insignificante: o sistema de cotas que garantia tratamento preferencial nos cargos públicos. A revolta, porém, foi manifestação do estresse econômico mais amplo.

Em reação às manifestações, Hasina, de 76 anos, recorreu à cartilha repressora da qual já lançara mão em situações desafiadoras antes – mas que, desta vez, levaria à sua derrocada. A princípio, tentou minimizar os estudantes, descrevendo-os como descendentes daqueles que traíram Bangladesh na guerra pela independência que seu pai ganhara – o que os revoltou ainda mais, levando-a a reagir com uma repressão violenta.

Enviou a ala jovem de seu partido, agressiva, para lidar com o que até então eram manifestações pacíficas – e quando os confrontos tiveram início, ela mandou mais forças para as ruas, ou seja, a polícia, o Exército e até o Batalhão de Ação Rápida, unidade antiterrorismo acusada de tortura e desaparecimentos.

Sua situação ficou precária no fim de julho, quando a ação nas ruas se transformou em carnificina e mais de 200 pessoas, na maioria estudantes e jovens, foram assassinadas. O resultado foi um endurecimento ainda mais drástico, com a instituição de um toque de recolher, interrupção do serviço de internet, detenção de mais de dez mil pessoas e acusação de dezenas de milhares por ação criminosa. O movimento pareceu se dispersar. “A verdade é que, se essas medidas duras fossem permanentes, obviamente as pessoas silenciariam. Até quando alguém vai protestar vendo os amigos sendo abatidos? Mas o preço para Hasina pode ser excessivamente alto, tipo a perda de todo e qualquer apoio”, explicou Naomi Hossain, especialista em Bangladesh da Faculdade de Estudos Orientais e Africanos.

Assim que o toque de recolher e o apagão das comunicações foram suspensos, ficou claro que o movimento não só não tinha morrido como se expandira, pedindo a responsabilização e a punição pelos massacres anteriores. Em quatro de agosto, as manifestações alcançaram o número máximo de participantes – e quando Hasina reagiu (de novo) com força bruta, e quase cem pessoas foram mortas no dia mais violento dos protestos até então, ficou claro que a população se livrara do medo que durante tanto tempo ela cultivara.

Quando, no próprio domingo, os ativistas planejaram uma marcha à residência oficial para o dia seguinte, sua reação foi de desafio, convocando a nação a “segurar os anarquistas com mão de ferro”.

Desde as primeiras horas da segunda, as vias que levam ao palácio presidencial, em Daca, foram interditadas; o serviço de internet foi interrompido novamente, como também o transporte público. Policiais e tropas militares tentaram segurar a imensa multidão nos portões da cidade, mas por volta do meio-dia ficou claro que a tática era só para ganhar tempo para o que estava acontecendo nos bastidores: Hasina tinha renunciado e estava deixando o país. Waker-uz-Zaman, chefe do Exército, reunido com os partidos políticos, discutia um governo interino.

Imagens pouco nítidas feitas por celular mostravam a ex-primeira-ministra saindo de um utilitário preto em uma base aérea militar, onde havia um helicóptero à espera. Dali, ela partiu para a Índia, onde deveria pernoitar antes de seguir viagem, muito provavelmente para Londres. O general fez um pronunciamento à nação para anunciar o fim do governo de Hasina, prometendo “justiça para todos os assassinatos e transgressões”.

Para o povo, a alegria foi imediata. As pessoas saíram às ruas e invadiram a residência oficial para fazer selfies e pegar alguma lembrança: um saiu com um vaso de planta; outro, com algumas galinhas; o terceiro, com um único prato; e o quarto, com um peixe gigante do lago ministerial.

Ainda assim, sinais de revolta persistiam no fim do dia, com manifestantes derrubando estátuas do pai de Hasina, tacando fogo no museu erigido em sua homenagem (na casa onde foi assassinado) e atacando a residência de ministros e membros do partido. Houve também relatos de ataques contra casas e templos de hindus, gerando temores de que os elementos islâmicos até então contidos estivessem ganhando força. “Não adianta Sheikh Hasina fugir; vamos fazer com que enfrente a justiça”, prometeu Nahid Islam, um dos líderes do movimento estudantil que foi detido e torturado duas vezes durante o período de repressão.

c. 2024 The New York Times Company

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