Sem aulas, festas e sob artilharia: como os adolescentes estão sobrevivendo à guerra na Ucrânia
A última vez em que pisaram numa escola foi em fevereiro de 2022; agora, os jovens vagam entre escombros sem ter o que fazer
Internacional|Andrew E. Kramer, do The New York Times
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A cratera imensa, aberta por um míssil russo e cheia de água, dificultava o trânsito em uma das ruas da cidade. O pequeno grupo de adolescentes que passava por ali achou o detalhe curioso. "Olha só, ganhamos um lago! Dá até para nadar", exclamou Denys, de 15 anos.
De moletom largo, mochila pendurada sobre um ombro, os jovens caminhavam pelo centro de Sloviansk, cidadezinha na linha de frente do leste da Ucrânia, por pura falta de ter o que fazer em uma tarde de primavera.
Passaram por soldados uniformizados e prontos para o combate, armados com fuzil, seguindo para as trincheiras a pouco mais de 30 quilômetros dali, e viram a movimentação dos caminhões militares, levantando nuvens de poeira. Estão vivendo o período da adolescência em compasso de espera por causa da guerra que os cerca — sem baile nem cerimônia de formatura, sem cinema, festas nem esportes.
A invasão russa da Ucrânia já causou horrores e prejuízos diretos tremendos — matou milhares e desalojou milhões, mas também fez outro tipo de estrago: acabou com as experiências normais de adolescentes como esses em Sloviansk, que moram perto das zonas de combate, tendo de viver em cidades arrasadas, frequentemente atingidas por foguetes. "Eu só queria ter uma vida normal. Passo os dias jogando no meu quarto ou zanzando por aí com meus amigos. Já percorremos a cidade toda, conhecemos cada esquina de cor. Perdeu a graça", disse Mykyta, de 16 anos.
Durante uma dessas incursões pelo centro, seis jovens falaram com humor de como lidam com as dificuldades impostas pela guerra e com o medo dos ataques russos, fazendo graça com tudo, inclusive uns com os outros. Foram identificados apenas pelo primeiro nome por causa da idade.
Perto da linha de frente
Sloviansk, pequeno centro urbano em uma região que já fora brevemente ocupada por forças russas em 2014, novamente se vê atingida pelo conflito que teve início no ano passado. Com a linha de frente muito próxima, a artilharia pesada começou a castigar a cidade — que é considerada o próximo alvo dos russos, se estes conseguirem capturar Bakhmut, vizinha a leste.
No entanto, muitos jovens permanecem ali, apesar do perigo, seja porque os pais continuam trabalhando, seja pela relutância de abandonar tudo e viver como refugiados. O último dia de aula presencial que tiveram foi 23 de fevereiro de 2022, véspera da invasão. As autoridades cancelaram todas as atividades organizadas para a faixa etária para evitar a possibilidade de que uma delas fosse atingida por um ataque.
Os russos bombardeiam Sloviansk pelo menos uma vez por semana, muito provavelmente para tentar acertar os milhares de soldados agrupados ali. As mortes se tornaram comuns, com pelo menos uma ou duas vítimas ocasionais, embora um ataque perpetrado em abril tenha matado 11 pessoas que dormiam.
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Quando as explosões retumbam pelas ruas, os jovens se jogam no chão para se proteger, a não ser quando o explosivo cai mais perto, espalhando estilhaços para todo lado — aí é correria na certa. "Por favor, não atire!", eles brincam, cobrindo a cabeça com as mãos. "É mais fácil lidar com a coisa assim. Na verdade, dá um medo danado", confessou Kristina, de 15 anos, que faz parte do grupo de jovens andarilhos.
Denys, cujo apelido é Guitarrista por causa da habilidade musical, explicou que, às vezes, depois de uma investida, ele se ergue e faz uma dancinha para deixar o clima mais leve. "A gente se joga no chão e ri, fazer o quê? Tem de segurar o astral", completou Daniil, de 16 anos, outro integrante da turma. Os estrondos dos disparos distantes, que vêm da linha de frente, retumbam sobre a cidade. Ele riu. "Vamos caminhando sob uma chuva de bombas. Lá vamos nós! Aqui já virou rotina."
Mykyta, de olhos verdes acinzentados e cabelo castanho na altura dos ombros, não entra em uma sala de aula há mais de ano. "Quero ser chef, cozinhar para minha mãe. Ela trabalha na companhia ferroviária estatal e me criou sozinha. Espero que a guerra já tenha acabado quando eu me formar, no ano que vem, depois de concluir o curso on-line. Aula eu tenho quando dá, com professores que estão no exterior. Aí talvez eu me mude, mas não sei. Gosto daqui, mesmo depois de tanto tempo de guerra. Não tem mais nada, mas não quero ir embora."
Segundo ele, o grupo não fala muito sobre a guerra ou a batalha de Bakhmut, que talvez sele a sorte de sua cidade. "Tem coisa bem mais interessante para discutir, tipo cinema, música."
Toque de recolher
O fato é que a invasão russa mudou tudo. A ansiedade normal da adolescência e as primeiras tentativas de independência agora se dão em meio às ruínas de uma cidade praticamente deserta. Com o perigo permanente, quem dá o toque de recolher às 9 da noite são os soldados nos postos de verificação, e não os pais. Estes, na verdade, já se tornaram insensíveis às sirenes — e, de qualquer forma, sentem que não têm muita opção a não ser deixar os filhos saírem depois de tanto tempo dentro de casa. A verdade é que nem a guerra consegue acabar com o tédio.
Os jovens chegaram a uma de suas paradas favoritas: a escadaria de um cinema desativado perto de um parque, cujo gramado está cravejado de buracos abertos pelos explosivos. Depois, seguiram para as arquibancadas vazias do estádio onde não há mais jogos para evitar aglomerações, convidando a ataques inimigos e suas consequências trágicas. "Antes da guerra, eu gostava de ir às churrascadas que faziam na periferia, do feriado do Dia da Cidade, que cai no outono e teve de ser cancelado... Nosso grupo era bem maior, tipo umas 20 pessoas, mas agora só sobraram 5 ou 6. O resto foi embora", explicou Daniil.
Sonia, de 14 anos, cuja mãe é dona de um salão de beleza, confessou sentir saudade da vida antes da guerra. "Eu nem sabia o que era medo, não tinha espaço para isso. Tenho saudade dos amigos que foram embora com a família, em busca de segurança. Eu me apego com muita facilidade, por isso a despedida dói demais. Saí uma vez para caminhar com uma amiga e os ataques começaram. Entrei em pânico, comecei a chorar e a acenar para todo carro que passava, pedindo que parasse e nos levasse de volta para o centro. Se o bombardeio é intenso, dá medo, mas, se for uma bomba só, aí tudo bem."
Um dos ataques abalou muito Rostyslav, de 15 anos. Ele estava jogando videogame no quarto, à 1 da manhã, quando uma explosão sacudiu o prédio. "Meus pais me pediram que eu ficasse de prontidão para fugir a qualquer momento. Tento me preparar; vivo no meio-termo entre a normalidade e essa tensão."
Depois de passar pela cratera alagada, Denys viu um canteiro de tulipas no jardim de uma casa. Colheu uma, foi até um grupo de meninas que estava ali perto e entregou a flor a uma delas. "Você é muito bonita", disse simplesmente.
c. 2023 The New York Times Company