'Sigilo significa menos democracia', diz dono de precursor do WikiLeaks
John Young e Deborah Natsios fundaram o Cryptome em 1996 e afirmam que a vigilância em massa só piorou nas últimas décadas
Internacional|Filipe Siqueira, do R7
Em abril de 2010, o site WikiLeaks fez sua primeira grande revelação chocante: um vídeo que mostrava dois helicópteros Apache da Força Aérea Americana matando ao menos 12 pessoas em Bagdá, em 12 de julho de 2007. Entre os mortos estavam dois jornalistas da Reuters, cujas câmeras foram confundidas com fuzis.
Segundo o WikiLeaks, o vídeo, que recebeu o nome de Collateral Murder (Assassinato Colateral), foi obtido de uma fonte anônima. Mas, um mês depois, a analista de inteligência Chelsea E. Manning (que na época ainda atendia pelo nome Bradley Manning) foi acusada de vazar documentos secretos para o site.
Meses depois, uma investigação da revista Forbes revelaria que o hacker Adrian Lamo, que secretamente trabalhava para o FBI e a NSA e foi confidente de Manning, seria o responsável pela revelação da identidade dela.
O incidente colocou o site WikiLeaks e seu fundador e rosto público, Julian Assange, em meio a uma controvérsia sobre liberdade de expressão, segredos governamentais e prisões injustas. O furacão criado pelo site se ampliaria ainda mais nos próximos anos, com a divulgação de milhares de correspondências diplomáticas americanas e as revelações do ex-contratado da NSA, Edward Snowden, que mudariam para sempre tudo que entendemos sobre privacidade.
O vídeo Collateral Murder. Atenção, cenas fortes!
Mas, 10 anos antes do WikiLeaks, um site já divulgava documentos secretos de governos ao redor do mundo. Fundado em 1996 pela dupla de arquitetos americanos John Young e Deborah Natsios, o Cryptome (cryptome.org) ficou famoso ao publicar a identidade do analista da CIA que identificou Osama Bin Laden (apenas lendo uma matéria da agência Associated Press e vendo fotos oficiais da CIA no Flickr), além das disputas de emails dos próprios fundadores do WikiLeaks e identidades de agentes secretos japoneses.
Ao contrário de seu irmãos mais novo, o Cryptome não é encarado com especial entusiasmo pela mídia mundial. O New York Times já o chamou de “lista de dicas para terroristas” — em 2004, após o site publicar uma lista de gasodutos de Nova York — e a rede ABC News repetiu a dose e disse que as publicações do site eram um “excesso de informação” — após a divulgação de endereços completos e detalhados da Convenção Nacional do Partido Democrata, em 2004.
A revista Reader’s Digest foi ainda mais longe, em 2007, e lamentou (em uma matéria intitulada “Vamos calá-los!”) que o site seja protegido pela Primeira Emenda da Constituição americana, que garante liberdade de expressão: “infelizmente, não é ilegal ser idiota”, afirmou o autor do texto, parafraseando um ex-conselheiro da NSA.
“Destaco que o Cryptome não é um site de vazamentos como o WikiLeaks. Ao invés disso, o descrevemos como uma biblioteca pública gratuita, uma fonte de informação independente”, afirmam John Young e Deborah Natsios, em entrevista para o R7.
A dupla ressalta que “todo o mundo sabe que ninguém vaza mais dados que as próprias autoridades, que não suportam ser ignorados” e isso torna governos ainda mais perigosos.
A abordagem do site difere do WikiLeaks em um ponto fundamental: o Cryptome não faz parcerias com órgãos de mídia ou seleciona o que irá vazar. Assim que recebe documentos, a dupla os publica na íntegra. Também não existem garantias de que eles são de fato o que dizem ser, embora os dois já tenham recebido contínuas visitas de agentes do FBI e da CIA.
“Preferimos publicar todo o material que recebemos, sem discutir sobre possíveis riscos e perigos, ou fazer autopromoção”, comenta Young, criticando a atitude de Assange, ao liberar informações como um “conta-gotas”, citando o caso Snowden.
Em entrevista ao extinto site Gawker, em 2013, Natsios foi ainda mais irônica sobre a questão: “A serialização de conteúdo relembra os tablóides, Charles Dickens e outros escritores do século XIX”.
Infância movimentada
O envolvimento de John Young e Deborah Natsios com material sigiloso começou ainda na infância. Nascido no Texas, ele viu seu pai trabalhou em um campo de prisioneiros no estado. O próprio John trabalhou no Exército, por três anos no Corpo de Engenheiros na Alemanha, de 1953 a 1956. Ao voltar aos Estados Unidos, se formou em filosofia e arquitetura e lançou o site Urban Deadline, junto com estudantes da Universidade de Columbia, onde cursava pós-graduação em arquitetura. John Young descreve o site como “precursor do Cryptome”.
Natsios teve uma infância ainda mais movimentada: morou em casas secretas da CIA e durante uma das mudanças escapou de um golpe de Estado na Indochina. Seu pai, Nicholas Natsios, foi chefe da estação da CIA na Grécia, Vietnã, França, Coreia do Sul, Argentina, Holanda e Irã.
Assim como Young, Natsios pós-graduou-se em arquitetura e logo depois formou-se em matemática.
Ao ser questionado sobre uma possível ligação entre essa trajetória e o interesse da dupla com temas espinhosos como privacidade e liberdade de informação, Young é taxativo: “Não”.
Ainda assim, o trabalho dos dois à frente da Natsios Young Architects envolve muitos dos temas que tornaram o Cryptome tão famoso entre os obsessivos com segredos governamentais.
Em uma entrevista para o site Archinect, a dupla afirma que os arquitetos atuais se tornaram “trabalhadores sedentários” sem muito conhecimento de campo, servindo “ambientes privatizados dominados por dinheiro desregulamentado, seguradores e interesses imobiliários”.
“Infâncias desamparadas podem explicar por que, como pedestres intensos, John e eu mantemos um apego fortemente visceral à rua urbana vivida”, completa Deborah Natsios.
Segundo eles, o interesse de fato pelos temas abordados no site viria depois, quando os dois se envolveriam com a lista de emails Cypherpunks — um grupo entusiastas de tecnologia e privacidade que viam na criptografia uma forma de se proteger da intromissão do governo. Como filosofia subjacente, o grupo defendia que “quanto menos segredos” mais democrático seria uma nação.
A Internet evoluiu e se tornou a maior máquina de espionagem do mundo
Os Cypherpunks se reuniram em um proto-movimento no final dos anos 80 e em 1992 foi inaugurada a lista de lista de discussões que reunia gente como Julian Assange, Bram Cohen (criador do protocolo BitTorrent) e Philip Zimmermann (criador do protocolo PGP, que utiliza criptografia de ponta-a-ponta em comunicações online).
No seu auge, o grupo tinha 2.000 assinantes, que comentavam, entre outras coisas, sobre o nascimento do Bitcoin. Era um momento particularmente estranho, uma vez que criptografia era considerado uma tecnologia sensível comparável à munição de armas e sua divulgação nos Estados Unidos era regida por princípios de Segurança Nacional.
“Cyperpunks está no centro de tudo. É de lá que surgiu a ideia de criar o site Cryptome e nosso interesse em privacidade, controle e sigilo”, dizem Deborah e John.
Os dois se descrevem como “ativistas de longa data” e por isso nunca temeram que possuir um site tão explosivo poderia, de alguma forma, complicar suas carreiras — um trabalho que envolve o contato com estruturas sensíveis de Nova York, como o metrô e gasodutos.
E daí vem a pergunta mais importante na trajetória dos dois: por que eles jamais foram presos nessas mais de duas décadas — enquanto Assange vive desde 2012 na embaixada do Equador em Londres, e Chelsea Manning só foi libertada de uma condenação de 35 anos por interferência do ex-presidente Barack Obama?
A resposta não é completa, mas envolve uma aversão da dupla a se promover.
“Nós não queremos ameaçar o público nem buscar reconhecimento, que é o que move muitas indústrias, da arquitetura à zoologia — este é o terrorismo emocional e intelectual real, oficialmente abençoado, fomentado ultimamente pela predação de dados e futuramente pela Inteligência Artificial”, afirmam.
Segundo registros do site Cryptome, o governo americano reconhece a legalidade do trabalho do Cryptome, comparado ao serviço de jornalistas.
Em uma visita do FBI à sede do escritório dos dois, em novembro de 2003, os agentes reconheceram que as informações contidas na biblioteca do site não eram ilegais, mas solicitaram a retirada de informações de contato (endereços e telefones, principalmente) de boa parte dos integrantes da família Bush. A alegação é que os Bush ficaram “perturbados” que essas informações estejam facilmente acessíveis, embora reconheçam que nenhuma delas era secreta.
Segundo os agentes, não havia “uma investigação ativa contra o site ou seus donos”, mas eles protestaram quando Young e Natsios afirmaram que publicariam um relatório sobre a visita, incluindo os nomes dos agentes.
O futuro da privacidade
O Cryptome é também uma mostra de como a tecnologia de vigilância mudou em mais de duas décadas. As agências secretas americanas são várias e hoje respondem por siglas obscuras que vão muito além da CIA, FBI e NSA, e são auxiliadas por empresas privadas que detém montanhas de dados sobre seus usuários que podem ser comprados pelo preço certo.
“A vigilância em massa ficou ainda pior [nos últimos 20 anos], espalhando-se de governos para corporações, ONGs, indivíduos. A Internet evoluiu para a maior máquina de espionagem do mundo, enganando usuários, roubando dados, vendendo dados muito menos regulamentados que agências governamentais”, afirmam Young e Natsios.
É esse o futuro que estamos inseridos: onde a Internet se tornou uma arma de vigilância, redes sociais influenciam o destino do planeta e chefes de Estado abusam de mentiras para obter capital político.
A saída para evitar um futuro destrutivo, segundo Young e Natsios, reside em uma frase do psicólogo Carl Jung, mais especificamente do livro Modern Man in Search of a Soul, citada na página inicial do Cryptome: “A manutenção de segredos age como um veneno psíquico que afasta seu possuidor da comunidade”.
“Se você possui um segredo, exponha-o, não o esconda”, finaliza Young.