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A invisibilidade das espécies aquáticas nas estratégias de conservação

Embora essenciais para a biodiversidade, as espécies de água doce seguem negligenciadas

The Conversation

The Conversation|Mayerly Alexandra Guerrero Moreno, Everton Silva, José Max B. Oliveira-Junior, e Leandro Juen

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LEIA AQUI O RESUMO DA NOTÍCIA

  • Espécies aquáticas, especialmente de água doce, são negligenciadas nas estratégias de conservação globais.
  • Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU falham em incluir a biodiversidade de água doce.
  • Estudo revela que critérios para seleção de espécies bandeira são limitados, priorizando atributos visuais a valores ecológicos e culturais.
  • Necessidade de integrar saberes locais e descentralizar a pesquisa para fortalecer a conservação em ecossistemas aquáticos.

Produzido pela Ri7a - a Inteligência Artificial do R7

Pesquisa propõe critérios mais relevantes para a conservação de ecossistemas aquáticos Cesar Muginga/Reuters - 03.12.2025

Apesar de sua importância ecológica, social e econômica, os ecossistemas aquáticos, especialmente os de água doce, permanecem entre os mais negligenciados nas estratégias globais de conservação, uma prática ainda marcada por critérios limitados e viés em favor de ambientes marinhos e de espécies carismáticas, deixando de fora grande parte da diversidade aquática, sobretudo as presentes em rios, lagos e igarapés tropicais.

Essa invisibilidade também se reflete nos ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) da ONU, que negligenciam a conservação da biodiversidade de água doce, notavelmente ausente tanto no ODS 14 (focado em oceanos) quanto no ODS 15 (voltado a ambientes terrestres).


Enfrentar os desafios da conservação aquática exige a diversificação das espécies representadas e a ampliação dos critérios de seleção.

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Para isso, é fundamental a integração efetiva entre a ciência, as políticas públicas e os saberes locais. Nesse sentido, é fundamental que a pesquisa científica dê visibilidade às espécies invisibilizadas e reconheça também o papel das populações tradicionais na proteção das águas continentais.


O que a ciência mostra sobre a conservação de espécies aquáticas?

Um estudo recém-publicado na revista Water Biology and Security aborda diretamente essa lacuna ao examinar a sub-representação das espécies aquáticas, especialmente as de água doce, nas estratégias globais de conservação.

Intitulado “Use of aquatic organisms as flagship species in selecting priority areas for conservation”, o artigo foi desenvolvido por pesquisadores de instituições brasileiras e internacionais incluindo a UFOPA (Universidade Federal do Oeste do Pará), a UFPA (Universidade Federal do Pará), a UNILAB (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira) e o CCMAR/UALG (Centro de Ciências do Mar da Universidade do Algarve).


Eles realizaram uma análise abrangente da literatura científica sobre o uso de espécies aquáticas como bandeiras para a seleção de áreas prioritárias para conservação.

A metodologia envolveu a análise de 400 artigos científicos publicados entre 1997 e 2024 nas bases de dados Scopus e Web of Science.


O objetivo foi compreender quais espécies são mais frequentemente utilizadas como bandeiras, quais ambientes aquáticos recebem mais atenção, quais métodos são empregados e quais critérios orientam a escolha dessas espécies.

Os resultados apontam que os grupos mais representativos foram os do filo Chordata, que concentram mais de 70% das espécies analisadas, com destaque para as classes Actinopterygii (peixes ósseos), Mammalia (mamíferos aquáticos), Reptilia (répteis) e Aves.

Dentre esses grupos, destaca-se o predomínio de espécies carismáticas e de ampla distribuição, como a tartaruga-cabeçuda (Caretta caretta), o golfinho-nariz-de-garrafa (Tursiops truncatus), a tartaruga-verde (Chelonia mydas) e a lontra-europeia (Lutra lutra).

Essas espécies são frequentemente associadas a status de conservação preocupantes, como “Vulnerável” (VU), “Em perigo” (EN) ou “Criticamente em perigo” (CR), reforçando seu papel como símbolos de alerta sobre a perda da biodiversidade aquática.

No entanto, algumas espécies com menor risco, como a erva marinha Posidonia oceanica (menor preocupação), também aparecem na lista, destacando a importância de outros atributos como o papel ecológico e o valor cultural.

A presença de plantas aquáticas e invertebrados, embora minoritária, sinaliza o potencial de ampliar a diversidade taxonômica das espécies bandeira e integrar estratégias mais inclusivas na conservação dos ecossistemas aquáticos.

Em suma, os resultados revelam forte concentração na pesquisa e na conservação em ambientes marinhos e em espécies de grande apelo carismático, como peixes grandes e mamíferos aquáticos.

Em contrapartida, espécies de rios, lagos e igarapés tropicais permanecem praticamente invisíveis na produção científica e nas estratégias de conservação analisadas.

Além disso, o estudo identificou que os critérios utilizados para a escolha de espécies aquáticas como bandeiras da conservação são, em sua maioria, estreitos e concentrados em poucos atributos, o que limita o alcance das estratégias. Entre os principais critérios destacados, estão:

Status de conservação: Espécies classificadas como ameaçadas em listas nacionais e internacionais, como a Lista Vermelha da IUCN, são amplamente utilizadas como bandeiras, o que representa uma estratégia de sensibilização frente ao risco de extinção.

Atratividade visual e carisma: Organismos com aparência considerada “carismática” ou de fácil empatia, como golfinhos, tartarugas, arraias e grandes peixes, são mais frequentemente escolhidos, mesmo quando seu papel ecológico é algumas vezes menos relevante do que o de outras espécies pouco conhecidas.

Importância ecológica: Alguns estudos destacam o papel funcional das espécies, como sua posição trófica ou sua contribuição à integridade do ecossistema aquático. No entanto, esse critério ainda é pouco utilizado em comparação aos atributos visuais.

Distribuição geográfica e endemismo: Espécies com distribuição restrita ou endêmicas de regiões ameaçadas têm sido valorizadas como potenciais bandeiras, mas aparecem com menor frequência nas publicações analisadas.

Importância cultural e econômica: Critérios como o valor simbólico para comunidades tradicionais ou a relevância econômica da espécie para pesca e turismo ainda são raramente considerados, revelando um distanciamento entre ciência, políticas públicas e realidades locais.

O predomínio de critérios visuais ou conservacionistas clássicos demonstra uma visão restrita sobre o papel das espécies bandeira e limita o potencial transformador dessa abordagem nas políticas de conservação.

Diante disso, o estudo propõe urgentemente uma ampliação dos critérios, com maior integração de aspectos ecológicos, socioculturais e territoriais.

O desequilíbrio geográfico da pesquisa científica

Apesar do avanço na produção acadêmica sobre espécies aquáticas como bandeiras de conservação, os dados revelam um forte desequilíbrio geográfico. A maioria dos estudos é conduzida por instituições do Norte Global (América do Norte, Europa e Ásia), o que acentua o viés dos resultados.

Em contrapartida, países tropicais, que são megadiversos e possuem maior vulnerabilidade ecológica, têm participação reduzida, perpetuando a invisibilidade de seus ecossistemas de água doce e das espécies neles contidas.

Esse padrão evidencia a necessidade urgente de descentralizar a pesquisa e fortalecer a ciência produzida no Sul Global, promovendo maior protagonismo de pesquisadores e instituições locais na formulação de agendas, metodologias e políticas públicas de conservação.

Em regiões como a Amazônia, esse protagonismo é essencial para que as estratégias reflitam as realidades ecológicas, sociais e culturais específicas dos territórios aquáticos e sejam verdadeiramente eficazes.

Critérios limitados e distanciamento das práticas locais

Outro dado importante revelado pelo estudo é que os critérios empregados para eleger espécies aquáticas como bandeiras permanecem restritivos e pouco conectados aos contextos socioculturais locais.

Há uma clara predominância de atributos visuais, como carisma e atratividade estética, em detrimento de dimensões como importância cultural, econômica, religiosa ou simbólica para as comunidades que vivem às margens dos rios, lagos e igarapés.

Essa lacuna reforça o distanciamento entre a ciência e as práticas tradicionais, dificultando a construção de estratégias de conservação mais justas, participativas e eficazes.

Sem reconhecer o valor das espécies para as populações locais, os projetos de conservação correm o risco de impor soluções externas, pouco enraizadas nos territórios, o que compromete sua legitimidade e sustentabilidade a longo prazo.

Esta pesquisa representa um passo fundamental para compreender como as estratégias de conservação, especialmente o uso de espécies bandeira, podem ser aprimoradas a partir de uma perspectiva mais inclusiva, diversa e conectada aos territórios aquáticos amazônicos.

Ao alinhar a produção científica aos saberes e às demandas das comunidades tradicionais, a iniciativa busca fortalecer políticas públicas e práticas locais que contribuam para a proteção da biodiversidade aquática e para o desenvolvimento sustentável da Amazônia.

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O estudo relatado acima integra as ações do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Sínteses da Biodiversidade Amazônica (INCT–SynBiAm), do Programa de Pesquisa em Biodiversidade da Amazônia Oriental (PPBio-AmOr) e do Programa Ecológico de Longa Duração da Amazônia Oriental (PELD-AmOr), que atuam na articulação entre ciência, conservação e sustentabilidade na região.

Mayerly Alexandra Guerrero Moreno recebe financiamento da CNPq e CAPACREAM.

Leandro Juen recebe financiamento do CNPQ

Everton Silva e José Max B. Oliveira-Junior não prestam consultoria, trabalham, possuem ações ou recebem financiamento de qualquer empresa ou organização que poderiam se beneficiar com a publicação deste artigo e não revelaram nenhum vínculo relevante além de seus cargos acadêmicos.

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