“O silêncio gritava”, repórteres que estiveram em Mariana relembram tragédia 10 anos depois
Vinicíus Araújo, Hélverte Moreira a Virgínia Nalon contam como foi cobrir a maior tragédia ambiental do Brasil
Minas Gerais|Maria Luiza Reis, do R7

No aprendizado de um Jornalismo “tradicional”, somos ensinados que uma boa reportagem deve responder às seis perguntas-chave (o quê, quem, onde, quando, como e por quê) visando sempre entregar uma informação clara, “objetiva” e, acima de tudo, “imparcial”. Essa estrutura, aliada à seleção rigorosa (os tais valores-notícia), faz parecer que o processo de reportagem segue uma equação perfeita. No entanto, é no dia a dia que, nós jornalistas, encaramos o desafio de encontrar o equilíbrio entre a teoria e a prática. Dias como o 5 de novembro de 2015 colocam a prova não só a nossa técnica, mas também a nossa humanidade.
Há 10 anos, a lama de Mariana forçou o jornalista Vinícius Araújo a confrontar uma dolorosa realidade: é impossível não se envolver quando se respira o drama humano. Em 2015, ele estava no epicentro do maior desastre ambiental da história do país e, além de exercer seu papel como profissional, se tornou também uma testemunha. “Foi a primeira vez que que eu percebi que o jornalismo não é só noticiar, é testemunhar também. E o testemunho dói”, relata Araújo.
Quando Araújo chegou a Mariana, os acessos já estavam fechados. O desespero atingiu o ponto máximo para a equipe ao aceitar o desafio de chegar onde ninguém ainda havia pisado. Por uma trilha de quase uma hora, a pé, eles avançaram em direção a Bento Rodrigues. Um caminho guiado não pelo barulho, mas pela ausência dele.
“À medida que a gente foi avançando, parece que foi aumentando o silêncio,” ele relata. “E era um silêncio pesado. Eu não imaginava que o silêncio gritava tão alto.”
A lama havia engolido casas, vidas e a paisagem, deixando em seu lugar o rastro de um crime ambiental. Ao assistir a matéria que fez em menos de 48 horas após o rompimento, o jornalista descreve um reviver instantâneo: “Dá um nó na garganta. É uma volta no tempo. Eu começo a tentar lembrar dos sentimentos, das sensações daquele dia”.
Araújo recorda o desespero crescente das pessoas, que se aglomeravam em busca de notícias sobre suas casas e pertences. O que viu foram “olhares perdidos, olhares vagos” de quem não acreditava na destruição. Ao ser questionado se seria possível fazer uma reportagem como essa sem se envolver, ele foi categórico “Não dá. Não dá. Quando você está ali dentro, olhando para aquelas pessoas, sentindo o drama delas, respirando o drama delas, não tem como não se envolver.”
Dez anos depois, o sentimento de impunidade é o que mais lhe dói. “Ninguém foi punido, né? Houve julgamento, houve tribunal e no final das contas ninguém foi punido,” lamenta Vinícius. “Aliás, centenas de pessoas ou milhares de pessoas foram punidas e permanecem punidas até hoje, porque essa é uma cicatriz que não fecha.”
Para ele, revisitar a matéria uma década depois não é um simples exercício de memória, mas uma constatação amarga: “E olhando essas imagens, ela parece estar sangrando ainda.”
Vinícius Araújo não foi o único. Os jornalistas Helvérte Moreira e Virginia Nalon também estiverem em Mariana em menos de 24h após o rompimento da barragem.
A jornalista Virgínia Nalon não esquece o cenário da destruição que encontrou e tampouco a história de heroísmo que cruzou seu caminho: a coragem de professores e da diretora que salvaram 48 alunos da única escola do distrito, que foi devastada. “A coragem da diretora foi necessária... Ela foi avisada pelo marido sobre o perigo que todos corriam. Ela e a secretária foram de sala em sala para salvar os alunos”, relembra.
A lição, dez anos depois, ainda é urgente. Virgínia espera que os desastres sirvam de legado para que o erro não se repita e que: “Que as empresas envolvidas, que os envolvidos, eles sejam punidos, respondam por isso e que as vidas que floresceram, elas não se esqueçam disso aqui. Não pode esquecer.”
O repórter Helverte Moreira esteve na cidade nos primeiros dias após o rompimento. Ele acompanhou a chegada de moradores e, nos dias seguinte, de doações no ginásio da cidade. “Se passaram 10 anos, mas eu me recordo como se tivesse acontecido agora. As pessoas não conseguiam chegar. Tinha muito barro, muita lama”, relembra.
Antes de chegar a Mariana, Moreira viu as imagens que haviam sido feitas pelo helicóptero da emissora. Já sabendo da destruição, o repórter ainda enfrentou dificuldades quando chegou ao local. “Primeiro, a dificuldade de chegar aquele ponto que se tornou uma grande base para tudo. Ali, se formou um grande núcleo de comunicação para repassar as informações. E todo mundo queria acessar para entender o que tinha acontecido”, conta.
A rapidez dos moradores de cidades vizinhas e da capital mineira em ajudarem os atingidos foi o que impressionou o repórter. “Não paravam de chegar caminhões de todos os lugares com doações. Parecia que a gente tinha entrado em uma zona de guerra e essas pessoas precisariam recomeçar do zero, e foi exatamente isso que aconteceu”.
Ao assistir as cenas de 10 anos atrás, Moreira diz que é como se estivesse sentindo tudo novamente. Uma cobertura que, para ele, marca a vida e carreira de qualquer profissional. “O repórter, na essência, deve ser um contador de histórias, mas se você está contando uma história, está vivenciando ela. E não era uma história, eram as histórias de dezenas de pessoas. É algo que marca a vida e a carreira de um profissional que está lá para contar a história. Impossível separar” afirma.
Helverte conclui com um apelo à prevenção: “Nós vamos perder quantas vidas ou outras vidas para a gente entender que tem que trabalhar com a prevenção? Não é esperar acontecer. Mariana e Brumadinho poderiam ter sido evitadas”.
Rompimento
O rompimento, que aconteceu às 16h20 do dia 5 de novembro de 2015, matou 19 pessoas. Ao todo, 45 milhões de metros cúbicos de rejeito saíram da barragem de Fundão e 49 municípios foram atingidos direta e indiretamente. Até hoje, ninguém foi condenado pelo crime. No dia 14 de novembro de 2024, a Justiça Federal absolveu Samarco, Vale e BHP pelo rompimento. O Ministério Público Federal entrou com recurso, que ainda não foi julgado.
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