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De Itaquera ao Pacaembu, em dia de um clássico especial

No mesmo momento em que ele estava naquele velho estádio, Corinthians e Palmeiras jogavam pelo Brasileiro na Arena Corinthians

Nosso Mundo|Eugenio Goussinsky, do R7

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Estádio é cercado por casas e ruas arborizadas
Estádio é cercado por casas e ruas arborizadas

Estava a pé. Parou em frente ao estádio escuro, que começava a parecer apenas um monumento.

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O portão azul estava fechado. Mas não trancado. Como não tinha ninguém, ele o abriu facilmente, ouvindo um ranger. Depois entrou.

O berro de alguns pássaros no fim da tarde cortava o silêncio. Havia também sons de carros e ônibus distantes, passando nas redondezas de ruas arborizadas, cheias de mansões. Algumas vazias, como o antigo templo do futebol.


Era por lá que ele entrava todas as vezes em que ia ao Pacaembu. Ultrapassava a roleta, após a revista e, lá de cima, perto dos balcões dos bares e sob um leve odor de urina, vindo dos banheiros do corredor, apreciava a vista do campo.

Era sublime ver os preparativos, homens andando de um lado a outro daquele tapete. O alto-falante tocando músicas poéticas de cantores brasileiros. Pessoas conversando. Esperando. As arquibancadas enchendo progressivamente, até a entrada das equipes.


No mesmo momento, Corinthians e Palmeiras se enfrentavam em Itaquera, a mais de 30 km daquele local emudecido, de bancos descascados e cimento frio.

Em outras épocas, seria lá o cenário do clássico, numa explosão de emoção. Mas, no lugar do aperto, do calor, ele experimentou, de início, apenas o roçar do vento em seu rosto envelhecido.


Ligou o velho radinho de pilha, que ainda guardava, e que, há décadas, costumava levar aos jogos.

Oscar Ulisses trazia a energia do campo, lá da zona leste paulistana, para as ondas do rádio. "Dudu...Dudu...Duduuuuuu..." bradava, fazendo, em onomatopeia, apenas o som do nome remeter a uma disparada do palmeirense. Coisas mágicas dos narradores...

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Dirigiu-se ao setor em que costumava se sentar, na numerada descoberta. As cadeiras estavam um pouco desbotadas, com o mesmo tom alaranjado.

Sentou-se e, de repente, sentiu um longínquo murmúrio da multidão, de vendedores de pipoca doce, em um plástico rosa. De Mentex. Tudo em uma bandeja de madeira pendurada desde o pescoço. Um acordeón de sabores. Havia também os que vendiam cachorro-quente e refrigerante.

Começou a ouvir o jogo e...algo estranho aconteceu. Passou a ver com total nitidez os jogadores dos dois times à sua frente, lá no campo. As 44 mil pessoas não estavam em Itaquera. Estavam lá, com ele.

A defesa do Cássio, após cabeçada de Deyverson, foi naquele gol, próximo das escadarias dos vestiários, do lado do tobogã, onde estavam os torcedores do Palmeiras. Eles também estavam sentados na arquibancada, logo ao lado das cadeiras avermelhadas.

"Deyverson cabeceia e Cássioooooooooo!!!!" narrava Ulisses. E repetia, ao seu estilo. "Deyverson cabeceia e Cássioooooooooo!!!!"

O jogo então começou a crescer. E a se multiplicar.

Vozes misturadas

A voz de Oscar Ulisses foi se misturando a outras, de Fiori Gigliotti. De Osmar Santos. De José Silvério. Dos seus amigos Denis, Paulinho, Marcelo. E do seu pai, com quem tanto ia aos jogos. Um deles, aliás, foi como prêmio por ter tirado 7.9 na difícil prova de Matemática.

Uma vez, no meio da semana, foi com o Marcelo, que morava ao lado, assistir Corinthians e São Bento. Sentia-se livre ao se ver no estádio, em plena tarde. Ainda que tivesse de fazer lição. Luiz Fernando, um meia razoável, era quem tentava conduzir o Corinthians à vitória.

"Luiz Fernando entra pela direita, tenta o passe, a bola volta, ele para, espera". De repente, ele gritou: "Toca a bola, Luiz!!" O grito ecoou e levantou a multidão: "ohhhhhh."

Então ele experimentou a frutração tantas vezes vividas, como torcedor. Viu o jogador limpar para a direita e errar o passe, em uma época modorrenta para o time.

Nem conseguiu continuar reclamando, pois já viu Sócrates tocar a bola para fora e ir atender um jogador da Francana. Seu pai, ao seu lado, lhe disse: "Exemplo de jogador, ético."

Ao lado do Paulinho, na arquibancada, tomou uma sonora bronca do Ribeiro, torcedor famoso, de cabelão e desdentado. Foi porque chamou o Carlos de frangueiro, após falha contra a Inter de Limeira.

Logo viu Neto dar um lançamento que, de tão perfeito, parou na área, justamente na direção do jogador almejado. Contra o XV de Jaú.

No mesmo instante, Éverton arrancava pela esquerda e, entrando na área, chutou alto, sem chances para o goleiro do XV de Piracicaba.

O baixinho Silva, então, deu uma bicicleta sensacional, fazendo o gol do Juventus e sendo aplaudido por toda a torcida e pelo goleiro Ronaldo.

"É gol, é gol, é gol, é gol..." gritava Fiori sobre o gol de Ataliba, do mesmo Juventus, contra o Corinthians, no último minuto, para seu desespero. Via o "Moleque Travesso" como uma ameaça.

As tribunas

No intervalo, subiu as escadarias de mármore antigo, até as tribunas. No saguão com tacos envernizados, tomou um cafezinho em um copinho de plástico, servido pela atendente, uma senhora que trabalhava lá há anos.

E, em meio a fotos antigas do estádio, de grandes jogadores, pôsteres expostos, cheiro de madeira, via rodas de jornalistas famosos, músicos, dirigentes, conversarem.

Pouco se atrevia a ir falar com eles, mas vinha uma sensação de integração que lhe transmitia segurança.

Devia ser assim que todos se sentiam, vendo no futebol um portal da vida, um sentido para se notar incluído e, de alguma maneira, tentar se agarrar ao tempo que passa.

Alguns entravam para a fila do banheiro, ainda ao estilo dos anos 40, com torneiras longas e cor de cobre.

Voltou para o seu lugar, radinho na mão, ouvidos atentos.

Palhinha para Geraldão, que toca para Vaguinho...Essa dupla Dama e Wladimir, que se tornou quarto-zagueiro, não se entendeu hoje, neste 0 a 0 monótono contra o Santos...

Vai Edmar, faz o quinto contra o Botafogo (SP)...Que golaço do Neto, meia-bicicleta contra o Guarani, mas não tira a camisa não. O Marcelo ficou p. da vida, você foi expulso....

"Pô, seu Manolo, não vai me deixar entrar?", ele sempre falava para o fiscal, um velhinho, conhecido e querido pelos jornalistas, mas que não dava moleza para estudantes que ainda não eram formados e que não tinham credencial.

Todos parecem jogar ao mesmo tempo, aparecem e somem em milésimos. Depois voltam mais velhos, gordos. Parecem chamá-lo para dentro do campo.

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Ele indeciso, não vai. Olha seus amigos ao lado, gritando, falando palavrões, batendo forte no alambrado, copo grande na mão, subindo as escadas, olhando os prédios da Paulista, apreciando a noite que desce sobre o estádio.

Respira fundo. Sente o pulsar da cidade em sintonia com o pulsar das cadeiras. Sente o cansaço do jogo o acompanhar, um pouco de suor, um pouco de leveza, vendo de longe a massa escoar pelo portão principal. Lentamente. Até encher a praça Charles Muller de um pouco de vida e de saudade. "Fecham-se as cortinas e termina o grande jogo", repetia Fiori.

Aquele futebol

"Ô senhor, como o senhor entrou aqui, não pode ficar", disse um segurança, ríspido, já pela manhã. Ele, com dores nas costas, demorou para se levantar do chão frio.

Sentou-se no mesmo banco que sempre o acolheu. Sentiu tristeza em saber que não poderia prencher a solidão daquele assento.

Espreguiçou-se rapidamente e se ergueu, sem falar com o guarda. E sem perguntar quanto foi o jogo em Itaquera.

Após dar uma última olhada para o campo e para as arquibancadas, iluminadas pela luz do sol, saiu pelo portão lá de cima, já pensando em subir a Major Natanael, rumo ao metrô.

Sem ninguém ao seu lado. Nem para comentar, nem para reclamar, nem para comemorar.

Aquele futebol não fazia mais parte da sua realidade. Fazia parte da sua memória. E daquele local sagrado, só levou junto, além das lembranças, o velho radinho de pilha.

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Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.

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