A manhã do dia em que o Brasil foi tricampeão estava clara na maioria das cidades do país. A alegria do brasileiro, as cores de Copacabana, a ginga e a música ganhavam as ruas. Naqueles tempos de ditadura militar, a seleção brasileirae os jogadores foram abraçados por todos os povos.
Aquele mês de junho passou como um desfile de Carnaval no Brasil. Um sonho de outono. A alegoria da seleção brasileira fez até o meu vizinho, um senhor sisudo que pouco sorria, ser visto comemorando em um bar.
Meu pai, que não era dado a tantas comemorações, também se entusiasmou com as arrancadas de Jairzinho, as surpresas de Pelé, e, mais do que isso, as pessoas saindo às ruas para extravasar uma emoção e um orgulho enraizado de ser brasileiro. Era como uma mensagem de esperança.
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Naquele dia 21, fui prova, sem ter consciência, de que as palavras muitas vezes não alcançam as emoções mais profundas e, acreditem, mais simples da existência. Explicação? Ok. Descreva-me em palavras o amor. Uma esperança. Uma indignação. Uma frustração.
Muitas vezes, se alguém tentar, quem ler ou ouvir possivelmente vai dizer: "Que besteira!"
Mas meu pai não precisava me explicar o que estava sentindo no momento.
Bastava estar ao seu lado para compreender. Ou melhor, à sua frente, enquanto ele conduzia meu carrinho de bebê, assobiando a melodia da 9ª de Beethoven.
Comigo dentro do carrinho, só intuindo que a claridade, os suaves raios de sol, a musiquinha "Pra frente Brasil", tocada por uma bandinha, lá de longe, que se misturava ao assobio, e algumas serpentinas que atravessavam a minha frente, como alegres e brilhantes cometas, faziam daquele dia um dia diferente.
No momento em que Gérson fez aquele golaço de fora da área, meu pai, já no apartamento, deu um grito tão espontâneo que fez o tal vizinho também gritar.
E, da janela, ecoavam outros berros que, em meus ouvidos, deviam refletir alívio, esperança, desabafo, orgulho. Amor. Não dá mesmo para explicar em palavras.
Do berço, comecei a chorar. Minha mãe, então, deixou as taças de lado e veio me amparar. Pegou-me no colo, mas não conseguia me fazer parar.
A celebração prosseguiu por algumas horas com bolo, vinho, cerveja, conversas soltas, frases à esmo que relembravam lances, falavam de Pelé, de Clodoaldo, de tricampeonato, de Rivellino, de Brasil, de futuro.
Mas eu, soube depois, não parava de chorar. Nem mamadeira me calava. Nem conforto, nem colo. Aquelas lágrimas e meu pulmão cheio forjaram minha personalidade.
Desde então, até hoje, diante de um acontecimento marcante, aquele dia se faz presente. Como no filme De volta para o futuro. Nem precisa ser um fato mundialmente conhecido.
Pode ser quando um cãozinho abandonado roça seu focinho na minha perna em uma noite de inverno.
Ou no desenlace de um romance. Também durante um filme como Ben-Hur.
Pode ser em um show em que os acordes e a vibração contagiam.
Pode ser ao olhar para as estrelas e sentir o passado presente.
Pode ser ao ouvir Save a Prayer e ter na mente a tela da adolescência.
Pode ser quando eu me lembro dos tempos em que podíamos andar na rua e cumprimentar dando as mãos ou abraços.
Pode ser quando, pelas manhãs, andando com meu cão, não posso sentir a luz do sol no rosto inteiro, por causa da máscara.
Não importa. Nestas situações as palavras voltam a não ter alcance. Como quando meu pai estava por aqui me conduzindo.
E aquele longínquo dia de 1970 mostra o tamanho da força com que ficou em mim. Então eu, novamente, choro.
50 anos do tri! Relembre a carreira dos campeões da Copa de 1970