São Paulo se acostumou a ser cidade de encontros e desencontros
A cidade, de forma subjetiva, parece se transformar durante o crescimento das pessoas e se torna apenas um ponto em comum de vivências anteriores
Nosso Mundo|Eugenio Goussinsky, do R7
Foi na freada, naquela mesma esquina no Bom Retiro, que ele se lembrou de que, lá ao lado, seu pai estacionava o carro para irem à casa da tia. O lugar continua parecido, décadas depois: prédios baixos, comércio, um pouco mais de sujeira, é verdade. Ainda vivo.
Leia mais: Rotina de Jerusalém é cheia de detalhes surpreendentes
Mas, com a mudança dos seus tios para outro bairro e o próprio crescimento dele, a região se apresentava de uma maneira mais profunda, sob um ângulo mais adulto, instrutivo. Parecia um cenário já sem os atores em ação, após o espetáculo da infância.
Percebeu, então, toda a cidade como um fragmento de nossa trajetória. As vozes ecoando nas conversas nos saudosos almoços; o amanhecer que envolvia as ruas numa sensação de eternidade; o contorno dos prédios, que pareciam templos sagrados e imortais, nada mais eram que um palco para a massa de vivências.
Mas essa massa, ao contrário da sensação de imobilidade, se movimenta em nichos, de época em época, de região em região. Está muito mais para um terreno arenoso do que um asfalto concreto. Lembra a trajetória das nuvens, a flutuarem no céu em várias formas, se transformando lentamente, até sumirem no silêncio.
O mesmo bairro de Pinheiros, onde estudou e passou boa parte da meninice, ecoa ainda, em meio ao ronco de Civics e Corollas, a rotina dele com os amigos, em tempos de Brasílias e Variants.
Com o trabalho, novos compromissos, a cidade parece mudar. Mas somos nós que mudamos muito mais, deixando ela, a cidade, apenas como uma testemunha implacável de nossas alegrias e tristezas.
Interage conosco nos barzinhos calorosos da Domingos de Moraes, mas nada pode fazer nos nossos dias ruins, a não ser nos receber em seu colo.
Democrática, se mostra aberta tanto a nós quanto a nossos primos, a quem nunca vemos e pouco conhecemos, como se estivesse se multiplicando, numa só, sem contar nada sobre nossos passos e nossos segredos.
Ele sabe que, mais de 80% dos seus amigos, continuam na cidade. Mas ela já não é partilhada da mesma maneira por eles. Pouco se veem agora.
A Henrique Schaumann, onde iam almoçar no Hora do Almoço, após uma alegre travessia pelo bairro, continua a ser usada hoje por cada um deles. Mas, de uma forma diferente, mais solitária.
Quando passa pelo Sumarezinho, ainda se pergunta como vai sua primeira namorada, que morava lá. Talvez ela ainda passe pela Pompeia arborizada, cruze a mesma Heitor Penteado. Mas não mais no mesmo momento que ele.
A cidade, de forma subjetiva, vai se fragmentando durante o crescimento. Torna-se apenas um ponto em comum de vivências anteriores. De cidade comunitária, onde ele partilhava sua rotina com os amigos, virou uma cidade individualizada, onde cada um desses locais se torna muito mais uma recordação.
Uma vez, no trânsito, viu um grande amigo um pouco na frente, sobre a mesma ponte Cidade Jardim, que costumavam atravessar naqueles passeios de bicicleta.
Buzinou, mas o som se diluiu no meio dos outros carros, como se tivesse sendo abafado pelo tempo. Logo depois, o amigo virou na Marginal, e ele continuou, rumo ao Morumbi.
Veja também: Largo do Arouche será reformado para se tornar "boulevard"
Poderia ter ligado pelo celular, ou tentado o WhatsApp. Mas aquela cidade, naquele momento, não tornava a iniciativa possível. Ela acenava de uma maneira implacável. Era como se dissesse que não há como tentar ser gladiador hoje no Coliseu. Ou guerreiro da tropa de Saladino nas ruas de Jerusalém.
Soube, certa vez, que São Paulo, em seu núcleo, foi construída sobre lençóis freáticos. O ribeirão Anhangabaú é formado pela confluência do córrego do Saracura (sob a Avenida 9 de Julho), do Ribeirão do Itororó (sob a Avenida 23 de Maio) e do Córrego Bexiga (no bairro de mesmo nome).
Deságua no Tamanduateí como se, a cada dia, fosse renovado do acúmulo de histórias dos que vivem e viveram na cidade. A cidade, feita à imagem e semelhança do homem, também segue a natureza de um rio.
Nunca as águas de hoje serão as mesmas de ontem. Ele, então, pensou que, por mais que lamente, a cidade do passado não é a mesma do presente.
Isso não impediu, no entanto, que ele, finalmente, teclasse no celular em busca desse passado. Viver e vencer também é remar contra a maré. Criou, então, um grupo no WhatsApp, com os velhos amigos, para marcar um encontro. Mesmo ciente de que todos eles moravam na cidade do desencontro.
Férias em SP: conheça atividades gratuitas para a criançada
Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.