Um fusca vinho na Avenida Nove de Julho
Depois de um aniversário em sua casa, o menino foi dormir no apartamento dos tios, ao lado do Bom Retiro, e atravessou a cidade pela famosa avenida
Nosso Mundo|Eugenio Goussinsky, do R7
Para uma criança nos anos 70, a Avenida Nove de Julho, fundada em 1941, unia mundos. Da parte ajardinada com canteiros, divisa entre os belos prédios do Itaim-Bibi e as mansões do Jardim Europa, quase até o turbilhão do Bom Retiro, de lojas, comércio e onde a maior parte da família do garoto morava. Tios e primos.
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Era uma aventura ir de um lado a outro da cidade. Em cada trecho, características diferentes se apresentavam, como se o município fosse formado de nichos.
Dos endinheirados, dos mais pobres, dos trabalhadores e das madames. A Nove de Julho propiciava um verdadeiro passeio pelo universo local.
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Primeiro, em sua parte residencial, mais moderna e aburguesada, como se dizia. Essa parte terminava em um conhecido condomínio, no encontro da Nove de Julho com a São Gabriel (antiga Avenida Flora) e a Rua Groelândia, entre o Itaim e o Jardim América.
Este conjunto de três edifícios de doze pavimentos amarronzados, se tornou uma referência naquela parte da via. Havia outros dois, um na esquina de trás e outro do lado oposto.
A partir de lá, se iniciava um trecho constituído por casas à beira da avenida, onde ficavam empreendimentos e até uma rádio, a Capital, já depois do cruzamento com a Brasil, no qual, do outro lado, ficava (e ainda está lá), em uma ampla casa, a sede do Automóvel Clube Paulista.
Antes do túnel de luzes alaranjadas, mais alguns prédios residenciais. No meio do barulho dos Jardins, passando a José Maria Lisboa, a Franca e a Itu.
De lá, se avistava dois túneis, cada um com um sentido de direção, sob um antigo morro, rodeado de moradias, com as edificações e centenárias árvores se avolumando às suas costas.
Passado o túnel sentido centro, símbolo de uma viagem no tempo, desenhava-se um novo lado da cidade. Surgia a partir da borda do Bixiga, com edifícios antigos, muitos transformados em cortiços.
Lá também ficava o antigo edifício do IAPETC, erguido décadas antes como uma inovação arquitetônica.
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E, mais à frente, colado à Praça da Bandeira, o eterno Joelma, marco da construção civil e cenário de um trágico incêndio que realçou ainda mais o caráter humano daquela avenida e daquela região, imersas no magnetismo paulistano.
À noite, quando tudo fica mais calmo e reflexivo, o trajeto passava uma sensação de acolhimento, por entre os viadutos escuros e as antigas luminárias coloniais que se erguem até hoje - trazendo um pouco de lembrança aos mais velhos.
A noite do aniversário
Depois de um aniversáio em sua casa, o menino foi dormir no apartamento do tio e da tia, um casal que não tinha filhos.
Despediu-se dos seus pais. Os três saíram entre os últimos copos vazios da festa, deixando para trás os guardanapos na mesinha, o tapete verde da sala, cheio de migalhas, e as luminárias laterais, com algumas lâmpadas falhas.
Da ruazinha Galeno Revoredo, no Itaim, saíram pela Nove de Julho e, à certa altura, a porta do fusca vinho se abriu.
Os três pensaram que a maçaneta podia estar quebrada.
O menino, então, quis ajudar. Foi para o banco da frente, no colo da tia, e ficou segurando a maçaneta o caminho inteiro.
Como ela não tinha filhos, adorou a inusitada companhia.
Ele percebeu isso, enquanto vislumbrava a cidade e todas as suas nuances e ouvia a respiração tranquila daquela senhora.
Resvalavam bem pertinho, em seus ouvidos, as conversas do casal, em uma manifestação de confiança nele, que o fazia se sentir bem.
O ronco dos motores hoje são bem diferentes do daquele fusca vinho. O Vale do Anhangabaú, onde termina a Nove de Julho, também.
Deixou de ser uma pequena passagem para se tornar um túnel bem menos apertado do que o Daher Elias Cutait (aquele, mais conhecido como Nove de Julho).
Nos dias atuais, sempre que passa pela avenida, no entanto, em meio a alguma nova construção, sente que muita coisa está igual.
O cenário acumula as vivências de agora e de outrora, de jovens e velhos, integrando gerações.
A Nove de Julho nunca perdeu a cara daqueles dias. A única coisa é que, já sem os seus tios por aqui, não pode mais ficar indo para a casa deles.
Adulto, enquanto dirige seu próprio carro, para outros destinos, uma sensação permanece a mesma. A do aconchego familiar. A familiaridade com aquele cenário.
Quando criança, a gente já intui muita coisa. E ele sabia que aquele momento de carinho e confiança, ao lado dos tios, era especial.
E que, por isso, os prédios, as nuances, os postes de iluminação, os viadutos também eram.
Por isso segurou a maçaneta com tanta firmeza.
Não queria que a porta se abrisse. Não queria que aquele momento caísse no esquecimento, diluindo-se, como bitucas de cigarro, na sarjeta da Nove de Julho. Queria que aquele palco tão especial, um dia, o ajudasse a contar essa história.
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