A Anac falhou em impedir a quebra da ITA? Especialistas dizem que não
Companhia aérea cancelou voos e suspendeu operações após seis meses; passageiros foram pegos de surpresa
São Paulo|Do R7
O sentimento de frustração e revolta dos consumidores com a paralisação repentina dos voos da companhia aérea ITA, do Grupo Itapemirim, levanta uma questão básica: como é que deixaram uma empresa chegar a uma situação dessas, causando transtorno a milhares de pessoas em todo o país, de um dia para o outro?
O setor aéreo é regulado pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Cabe à agência fiscalizar o funcionamento desse segmento e suas empresas e garantir a sua operação plena. É o que ocorre em outros setores, como, por exemplo, o elétrico, que é fiscalizado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e o de transportes, pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).
Até o momento, a Anac limitou-se a declarar que foi informada ontem pela empresa Itapemirim Transportes Aéreos (ITA), por volta das 18h, sobre a "suspensão temporária das operações no Brasil devido a uma reestruturação interna".
A agência determinou que a empresa aérea prestasse imediato atendimento integral a todos os passageiros e comunicasse individualmente o cancelamento de voos e as reacomodações, bem como garantisse o reembolso das passagens aéreas comercializadas.
A agência afirmou ainda que a segurança das operações aéreas é sua prioridade e que, devido à paralisação das operações da empresa, suspendeu o seu Certificado de Operador Aéreo (COA). Mas será que não dava para ter feito isso antes?
O que dizem os especialistas
A reportagem ouviu um ex-diretor da agência sobre esse assunto. Ele, que preferiu não ter o nome revelado, disse que o papel da Anac de fato está concentrado na garantia da segurança da operação de cada companhia aérea, sejam aquelas que estão em atividade, sejam novas empresas que ingressem no setor.
A avaliação da agência, segundo esse ex-diretor, é que se trata de uma situação de livre mercado. No caso da ITA, a empresa passou por um processo rigoroso para poder operar, que envolve várias etapas de análise pela Anac.
A análise da capacidade financeira da companhia aérea chegou a ser feita pela agência, mas de forma bastante limitada. Como era uma empresa que vinha de um processo de recuperação judicial de seu grupo, a Anac chegou a tomar algumas precauções e prestou informações, inclusive, ao Congresso Nacional.
No início das operações da ITA, a empresa chegou a vender mais passagens do que o número de assentos disponíveis em seus aviões. Naquela ocasião, a agência agiu para controlar de perto a venda de passagens da empresa.
O especialista avalia, no entanto, que a questão da saúde financeira da empresa acaba sendo um tema em que a Anac tem atuação restrita. "Cabe à agência exigir segurança. Sobre a situação financeira, é preciso entender que se trata de um mercado de capital intensivo. Infelizmente, empresas desse setor quebram em todo o mundo", diz o ex-diretor.
O especialista lembra que a empresa, mesmo com as dificuldades que enfrentava, conseguiu fazer contratos de leasing de suas aeronaves, oferecidas por grandes empresas do setor que apostaram na operação.
Para Felipe Bonsenso, sócio da Bonsenso Advogados e especializado em aviação, a Anac cumpriu seu papel no processo de certificação da ITA, que fez tudo o que é exigido pela legislação. "Mesmo que eventualmente soubesse da dificuldade da empresa em ir para a frente, ela não poderia recusar a autorização operacional", afirma Bonsenso.
Para o especialista, uma interferência desse tipo só poderia ser feita se existisse no Brasil uma lei que exigisse um capital mínimo, um fundo de reserva ou algo nesse sentido.
André Castelani, sócio da empresa de consultoria Bain & Company, vai na mesma linha: "A Anac olhou o lado técnico para autorizar a operação da nova empresa, que cumpriu com todas as exigências, mas ao longo dos seis meses a ITA ficou fragilizada e deixou de cumprir acordos".
Segundo ele, a Anac não faz um acompanhamento financeiro das companhias, mas sim a regulamentação e o acompanhamento da prestação de serviços. "Pode ser que para novos passos venha uma nova legislação nesse sentido."
Concorrência
Quando foi anunciada, a chegada da Itapemirim ao mercado trouxe alívio para o Conselho de Administração e Defesa da Concorrência (Cade), de acordo com uma fonte próxima ao órgão antitruste. Isso porque há alguns anos a autarquia autorizou uma série de fusões e aquisições no setor, uma medida que, na época, gerou polêmica.
A avaliação agora é que o trabalho do Cade teria sido "bem-feito" para limpar o mercado de companhias que pudessem atrapalhar o desenvolvimento do ramo no Brasil e também pavimentar o caminho para que novas empresas começassem a operar.
"De qualquer forma, havia dúvidas se o mercado não estava muito difícil para entrantes, principalmente uma companhia que não tinha conhecimento da área e, em especial, num momento de demanda ainda mais baixa do que a normal, por causa da pandemia de coronavírus", disse essa fonte.
Em setembro, o Cade divulgou um estudo sobre o setor aéreo doméstico — que não menciona a chegada da Itapemirim ao mercado — a respeito do comportamento dos preços e do número de assentos vendidos por duas companhias aéreas nacionais, Gol e Azul, após suas fusões (Gol-Webjet, em 2012, e Azul-Trip, em 2013).
O conselho avaliou variáveis como as tarifas e os assentos vendidos de julho de 2010 a dezembro de 2019. "Os resultados indicaram uma redução de cerca de 8% na tarifa da Gol nas rotas que as empresas incorporadoras operavam antes da fusão (sobreposição de rotas) e um aumento de aproximadamente 38% nos assentos vendidos pela Gol nessas mesmas rotas após a transação", informa o documento.
O relatório salientou ainda que, com relação aos dados da Azul, não foram encontrados efeitos estatisticamente significativos na tarifa, mas um aumento de quase 27% nos assentos vendidos pela empresa em rotas sobrepostas. "Assim, é possível afirmar que o Cade cumpriu seu objetivo de proteger a concorrência em benefício dos consumidores."
O texto pondera, entretanto, que se trata de fusões pontuais em determinado período e que esses resultados não necessariamente devem ser encontrados em todas as transações no setor de aviação civil.