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Cracolândia vê movimento crescer 21% após dois anos de queda

A média de frequentadores chegou a 579 pessoas por dia de janeiro a setembro de 2021, superando médias registradas desde 2019

São Paulo|Gabriel Croquer, do R7

Cracolândia preocupa população paulistana desde o início dos anos 90
Cracolândia preocupa população paulistana desde o início dos anos 90

A movimentação de pessoas que usam e traficam drogas a céu aberto voltou a crescer na região da Cracolândia, no centro de São Paulo, após dois anos de queda. A média de frequentadores chegou a 579 pessoas por dia de janeiro a setembro de 2021, número 21% maior do que o registrado no mesmo período em 2019 (478) e 14% maior que em 2020 (506). 

Além disso, o mês de setembro de 2021 foi o mais movimentado na região desde novembro de 2019, com média de 713 pessoas por dia no "fluxo" da Cracolândia, até 56% maior que o registrado no mesmo período dos dois anos anteriores.

É o que revelam dados da Prefeitura de São Paulo, que estima por meio da GCM (Guarda Civil Metropolitana) a quantidade de pessoas na região desde julho de 2018 com o Programa Dronepol.

O levantamento é realizado por meio de cálculos com fotografias aéreas feitas por drones na chamada "cena de uso aberta da Luz", termo usado pela prefeitura para descrever a área de venda e consumo de droga explícito nas ruas da região da Luz, no centro de São Paulo. Atualmente, a Cracolândia se concentra no quadrilátero entre as alamedas Cleveland, Dino Bueno, Nothmann e rua Helvétia.


O aumento constatado em 2021 ocorre após uma série de reduções desde o início do monitoramento. Em julho de 2018, início da série histórica, foram registradas em média 1.725 pessoas no local. Após agosto e setembro com aumento —1.854 e 1.708 pessoas, respectivamente— o número caiu drasticamente em outubro daquele ano, e continuou caindo em média até 2021.

O secretário executivo de Projetos Estratégicos da Prefeitura de São Paulo, Alexis Vargas, afirma que a melhora dos indicadores da pandemia pode ter feito o movimento crescer na Cracolândia. Ele também considera que outros indicadores mostram melhora na situação do local durante a pandemia.


"Tem uma queda no número de 'viradas' de fluxo [ocorrências de brigas, tiroteios e arrastões], queda no número de roubos e furtos, e a polícia relata que tem menos droga lá", diz. "Quando a população de rua estava crescendo em 2020, o movimento diminuiu na Cracolândia. Isso está vinculado com o conjunto amplo de estratégias da prefeitura", diz.

A posição atual do fluxo mostra que a Cracolândia se mantém como um dos principais desafios da capital paulista mais de 31 anos depois da primeira apreensão de crack. Desde então, quando a "cena de uso aberta" ainda se formava, o movimento prosperou, estabeleceu-se e mudou de local apenas por alguns metros, mesmo após diversas interferências de prefeitos, governadores, ações policiais, ONGs ereintegrações de posse de imóveis


O fluxo já esteve, por exemplo, nos cruzamentos da rua Helvétia com a alameda Barão de Piracicaba e da Helvétia com a Cleveland; exclusivamente na praça Princesa Isabel; e na rua dos Gusmões, próximo da esquina com a alameda Barão de Limeira.

Em comum a todos os locais dos acampamentos montados por traficantes e usuários através das décadas está a degradação humana, urbana e o aumento da violência no centro de São Paulo como resultados. Os acampamentos também exigem centenas de milhões de investimento em serviços de saúde da prefeitura e do policiamento da GCM e Polícia Militar.

Estatísticas do programa Redenção, criado pela gestão Doria/Covas para combater a Cracolândia, dão conta da gravidade da situação local em 2021. De janeiro a setembro deste ano, equipes municipais realizaram um total de 25.483 abordagens, 3.491 atendimentos médicos, 9.094 atendimentos de enfermagem e 2.337 encaminhamentos à rede de assistência social na área.

O Seas (Serviço Especializado de Abordagem Social), que faz atendimento à população de rua, calcula 33.031 abordagens na região da Nova Luz no mesmo período de 2021, das quais 4.405 encaminharam os usuários a centros de acolhimento. 

Tratamento

Para especialistas ouvidos pelo R7, no entanto, as características sociais do "fluxo" da Cracolândia formam uma espécie de barreira que diminui muito o efeito desses atendimentos e também de ações policiais contra traficantes.

"A pessoa entra numa drogadição que perde a noção desde quando está lá, de como foi parar lá. Ela também está entre iguais, com o benefício de ter as coisas próximas, em um ambiente conhecido", descreve Marcelo Lobato, psicólogo especialista no combate ao vício em drogas que já trabalhou durante anos no fluxo.

Sendo ele próprio um ex-usuário que se recuperou do vício em drogas, Lobato é um defensor da abstinência total e considera que internações compulsórias podem ser válidas como tratamento para casos da Cracolândia. "A pessoa precisa de um raio na cabeça para pensar: 'eu tenho que sair daqui e eu preciso de ajuda'", diz. 

Ele, porém, defende que a disposição do paciente é fundamental para a recuperação plena após os primeiros atendimentos. Além disso, argumenta, os tratamentos compulsórios e involuntários dependem de autorizações judiciais, psiquiátricas e familiares, possibilidade distante de muitos dos usuários da Cracolândia.

Também por isso, a estratégia da prefeitura no local passa pela redução de danos no uso, que preza pela conscientização e acolhimento dos usuários. Uma vez que o adicto passa pelos primeiros atendimentos nos Siats (Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica) de fase 1 e 2, ele é encaminhado aos Siats na fase 3, a mais de 10 km do fluxo, onde pode viver, começar a trabalhar e ser pago pela prefeitura quando der início a tratamento.

A ex-assessora especial da Prefeitura de São Paulo Angélica Comis, que trabalhou no Braços Abertos, da gestão Haddad (PT), e no início do projeto Redenção, critica essa estratégia da prefeitura.

"Não adianta você falar que vai oferecer moradia para uma pessoa depois que ela já estiver abstinente, trabalhando, toda organizada. Ela precisa disso quando ela não está, quando está no pior momento da vida é que precisa de uma moradia de baixa exigência", diz a psicóloga, que trabalha na região por meio do Centro de Convivência é de Lei. 

Ela ainda afirma que a gestão atual, como as anteriores, não conseguiu baixar consideravelmente o número de usuários na Cracolândia. "O fluxo não diminuiu, ele se mantém e ainda pode aumentar mais tendo em vista o número de pessoas que estão em situação de rua por conta da pandemia." 

"Eles [poder público] conseguem criar uma narrativa que diminuíram a cena de uso. Porém, é uma hipocrisia porque as pessoas continuam em situações de rua e fazendo uso de substância em outras regiões do centro também", completa.

Além da redução de 21% no fluxo em 2021 até setembro em comparação com períodos semelhantes nos últimos anos, os dados da GCM mostram queda semelhante se considerada a média de 2021 comparada com a dos últimos anos inteiros — entre janeiro e dezembro. A média de 579 pessoas por dia constatada de janeiro a setembro de 2021 supera a de 2020 — 478 pessoas por dia — e a de 2019 — 533 frequentadores.

Problema de polícia

Conflitos entre policiais e guardas-civis com usuários são comuns
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"Sem essa ação de recuperação nosso trabalho vai ser eterno. Prende um traficante, vem outro. Prende um, vem outro", diz o delegado do 77º DP (Santa Cecília), Severino Vasconcelos, que liderou algumas das prisões mais notórias em 2021 contra traficantes da região no âmbito da Operação Caronte.

Nas primeiras três fases da operação, foram presas em flagrante ou temporariamente 21 pessoas. Entre elas, foi detida em julho Lorraine Cutier Bauer Romeiro, a "Gatinha da Cracolândia"

Na semana, a terceira fase da operação da delegacia fechou as hospedarias e hotelarias utilizadas como ponto de venda do crack. Outras três operações são planejadas para a região, conta o delegado, com o objetivo de conseguir separar traficantes e permitir a incursão de forças policiais no fluxo. 

"É trafico e uso na mesma base territorial, isso é o que fez surgir a Cracolândia. Se você tiver tráfico em um local e uso em outro — não é que a gente pode permitir, a gente vai atrás do traficante — mas é uma coisa aceitável", relata.

"Porque aí não teremos essa geografia que permite o traficante agir, sendo ele protegido por um monte de usuários. A segurança pública não consegue chegar até lá para prender ele, senão causa um distúrbio civil." 

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Conflitos

Enquanto isso não ocorre, é comum que durante intervenções policiais — e até mesmo em limpezas da prefeitura — o fluxo "vire" e acabe em cenas de depredamento, tiroteio, arrastão e morte.

Responsável pela supervisão do local, a GCM costuma estar envolvida e é criticada por entidades do local por casos de agressão. Há um mês, por exemplo, um agente da corporação foi flagrado quebrando um cassetete nas costas de uma artista. Ele foi afastado da guarda. 

A atuação já chamou a atenção do MP-SP (Ministério Público de São Paulo), que entrou com ação civil pública na Justiça para que a corporação pare de atuar como polícia na Cracolândia.

"A proposta é delimitar o trabalho da guarda no território da Cracolândia, para que eles sirvam de apoio às entidades da área. A GCM serve para guardar patrimônios, zelar pelos espaços públicos, ela então precisa ficar restrita à forma de atuação para qual ela foi treinada", diz a promotora Anna Trotta Yarid, uma das autoras da ação.

Como exemplo, a promotora cita na ação vários episódios denunciados desde 2017 de revistas e agressões consideradas arbitrárias na Cracolândia, que atingiram até servidores da prefeitura que trabalham no tratamento de usuários. 

O secretário da prefeitura Alexis Vargas defende a tese de que, apesar de casos de agressão, o trabalho da GCM é decisivo para a manutenção da ordem, inspecionando a limpeza das ruas e impedindo nas revistas que usuários voltem a entrar no fluxo com o objetos que são usados para consumo e venda de crack. 

Além do policiamento, diz Vargas, a prefeitura tem como foco para o final da gestão e do programa Redenção a criação de mais vagas em centros de acolhida e atenção; e a desocupação de imóveis nas ruas próximas para requalificar a área. 

"Temos um monitoramento de outros locais da cidade para que não virem cenas de uso volumosas e novas cracolândias. Este é o grande problema da Cracolândia, o volume dela, não podemos ter outra situação assim", relata. 

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