Mulheres enfrentam truculência e desestímulo em delegacias de SP
Delegacia de Defesa da Mulher completa 35 anos, mas ainda reúne reclamações sobre atendimento e incentivo à desistência do registro policial
São Paulo|Fabíola Perez e Joyce Ribeiro, do R7
Laura da Silva*, de 29 anos, teve a cabeça presa entre as pernas de seu ex-marido por quase uma hora. Os socos alternados com golpes “mata-leão” eram assistidos pelo filho de quatro anos, que gritava e chorava. Quando finalmente conseguiu se livrar da imobilização, o ex-companheiro saiu de casa e levou a criança.
Desesperada, Laura foi até a Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) da Sé e, finalmente, registrou um boletim de ocorrência. Esta foi a primeira vez, nos últimos quatro anos, que Laura conseguiu, de fato, fazer a denúncia em uma delegacia. “Perdi as contas de quantas vezes tentei denunciá-lo desde que fui ameaçada pela primeira vez. Já fui em delegacias comuns e especializadas, mas sempre me desestimulam a levar adiante”, afirma.
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Hoje, Laura mora com seus dois filhos na cidade Cruz das Almas, no sul da Bahia, e obteve na Justiça uma medida protetiva que deveria manter o ex-marido distante dela. Na prática, segundo ela, ele ainda envia mensagens para dizer que ela “estragou sua vida”.
Mudar de estado foi a única solução eficiente que Laura encontrou para se sentir segura com as crianças. “Ele me agredia e ameaçava de morte”, diz. No dia 12 de junho do ano passado, lembra, ele a jogou no chão e tentou enforcá-la. “Quando ele pegou meu filho, decidi mais uma vez ir à delegacia”, afirma. Às 2h da madrugada de um domingo, Laura seguiu para a região central de São Paulo. Lá, enfrentou descaso e desestímulo. “O policial disse que eu não seria a primeira nem a última mulher a passar por isso.”
A rotina de ameaças, agressões e estupros vividos por Laura sequer chega a fazer parte das estatísticas de violência pela dificuldade em realizar o registro policial. Não há um número que evidencie quantos casos deixaram de ser registrados. Isso porque o único levantamento existente, realizado pela Ouvidoria de Polícias de São Paulo, mostra que, em 2019, houve 58 reclamações de mulheres em relação às delegacias especializadas contra 51 em 2018.
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O número não é dos maiores, mas apenas na capital paulista, que tem 9 unidades voltadas às mulheres, foram 10 denúncias registradas na Ouvidoria no ano passado, quase uma por mês. No estado, são 133 delegacias da mulher, número que corresponde a quase 30% de todas as unidades especializadas existentes no país.
A mulher precisa fazer a denúncia na Ouvidoria seja presencialmente, por e-mail, telefone e até carta. “É um momento em que elas estão extremamente fragilizadas. Qualquer desestímulo pode fazê-las perder a vontade de denunciar”, afirma Ana Paula Freitas, advogada do Ibccrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais).
"Foi bem agressiva e me interrompia. Queria focar no momento da agressão. Me interrogou na frente de todos"
Paula* foi à delegacia da mulher da zona sul em outubro de 2019 para registrar uma denúncia contra o marido. Os dois estavam se divorciando depois de um relacionamento de 12 anos. Ela revelou que o companheiro não aceitava o fim do casamento, então ele a trancou em casa e, quando tentou pegar a chave dele, ele rasgou a camiseta dela.
Após a violência, ela foi sozinha procurar a polícia. “Aproveitei um momento de coragem, queria resolver logo. Cheguei na troca de turno e tive que esperar por uma hora e meia a delegada chegar. Eles fazem de tudo para você desistir. Quando as pessoas chegavam, já avisavam que tinha que esperar uma hora e algumas desistiam. Eu fiquei, mas isso já funcionava como triagem”, conta.
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A vítima também reclamou da forma com que foi interrogada inicialmente por uma escrivã ainda no hall da delegacia na frente de outras pessoas. “Sou esclarecida, se não fosse, teria chorado e ido embora. A forma de perguntar foi truculenta, bem agressiva. Não tinha paciência para ouvir a cronologia dos fatos, me interrompia e queria saber se caracterizava violência ou não”, lembra.
Paula ainda presenciou outra mulher sendo desincentivada a registrar a denúncia por falta de provas. “Todos diziam que não daria em nada”. Após o depoimento, ela foi ao IML (Instituto Médico Legal) para receber o laudo e oficializar a agressão. Para ela, este foi o momento mais constrangedor: “Só tinham homens para me atender. O médico e o fotógrafo. Eu exigi uma mulher, mas não tinha. Tirei a blusa e a calça. Só queria que terminasse logo. Foi muito ruim, eu já estava fragilizada”.
A delegada Jamila Jorge Ferrari é coordenadora das Delegacias de Defesa da Mulher de São Paulo e explica que “as ocorrências de violência doméstica não ficam restritas às DDMs. A mulher tem o direito de registrar a ocorrência onde quiser. A decisão é dela”.
Segundo a lei Maria da Penha, o atendimento nas delegacias da mulher não precisa necessariamente ser feito por uma funcionária, mas preferencialmente sim. Todas seguem o Protocolo Único de Atendimento, que padroniza e tenta humanizar o tratamento a mulheres. Para isso, todos funcionários passam por uma capacitação: “Eles fazem um curso de atendimento às vítimas de violência doméstica e sexual na Academia de Polícia”, explica a coordenadora.
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De acordo com a delegada Jamila Ferrari, o grande problema hoje é o déficit de policiais em todo o estado e a falta de recursos materiais. “Queremos diminuir a incidência de crimes, mas não as denúncias. A mulher nunca pode se sentir desmotivada a ir ao DP”, destaca.
Segundo Jamila, os três crimes mais registrados nas DDMs são: lesão corporal, ameaça e crimes contra honra, como calúnia, injúria e difamação. A delegada Renata Cruppi, da DDM de Diadema, ressalta que houve um aumento no número de casos registrados de ofensas e ameaças. “Esta é a primeira fase da violência contra a mulher. Antes esses crimes eram considerados de menor potencial.”
Não há uma média de boletins de ocorrência registrados porque o número varia dependendo da região. Por exemplo, na 5ª DDM (Tatuapé, zona leste da capital) foram 100 B.O.s em janeiro deste ano, mas na 6ª DDM (Santo Amaro, zona sul) foram 600 ocorrências no mesmo mês. No interior, a situação se repete: em janeiro em Sorocaba foram feitos 120 boletins enquanto em Campinas foram 420.
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Coragem para denúncia
O tempo estimado para uma mulher ter coragem de denunciar um agressor, segundo a delegada Renata Cruppi, da unidade especializada de Diadema, é de cinco anos. “Às vezes, ela consegue narrar só o começo da violência. São necessários anos para ela dar o primeiro grito de socorro”, diz.
Em abril do ano passado, em uma tentativa frustrada de denunciar o ex-marido, Laura compareceu a uma delegacia na zona sul da capital, e foi questionada pela autoridade policial se realmente gostaria de fazer o registro, já que ele trabalhava e havia uma situação de dependência financeira. “Estava roxa, com a boca sangrando e uma toalha de banho para estancar o sangue”, lembra.
A delegacia estava lotada quando o ex-companheiro afirmou que havia se arrependido. “Ele começou a falar que foi um surto causado pela bebida”, diz Laura. “Como estava muito cheia, perguntaram se eu tinha certeza que queria denunciar, se não era melhor fazer o boletim de ocorrência outro dia. Voltei para casa porque ninguém estava disposto a me atender.”
Incentivo ao feminicídio
Somente no ano passado, 42 mulheres foram assassinadas na capital paulista pela condição de ser do sexo feminino. O número de 2019 corresponde a uma vítima a cada nove dias, um aumento de 55,5% em relação ao ano anterior.
Um dos motivos que explicam o aumento do número de feminicídios é a resistência no momento de registrar o boletim de ocorrência por violência física ou psicológica. “O feminicídio vem porque essas mulheres vão diversas vezes a delegacias e são desencorajadas”, diz Ana Paula Freitas. “É muito difícil para elas travar uma discussão com os policiais.” Outro problema na hora de fazer o B.O. é, segundo a advogada, o registro apenas do último ato de violência. “O correto é registrar a sequência de agressões, principalmente em casos de estupros”.
Ao longo de sua atuação como advogada, Ana Paula presenciou diversos tipos de violações em delegacias especializadas. “Acompanhei uma mulher estrangeira e a escrivã não teve a menor paciência”, afirma. Em outro caso, a advogada relata que uma mulher foi denunciar um caso de abuso por parte de um motorista de aplicativo e a delegada acionou o marido da vítima. “Quando se trata de violência psicológica, é muito comum afirmarem que não se trata de um crime.”
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A coordenadora de DDMs, Jamila Ferrari, acredita que aumentaram os registros policiais porque as pessoas estão mais conscientes da importância do B.O. “O feminicídio é um homicídio evitável. Ao denunciar, a vítima fica mais forte e se sente acolhida. Ela precisa de todo um aparato: saúde, educação, assistência social e emprego para se empoderar. É uma forma integrada de tirá-la daquele ciclo”, ressalta.
A delegada revelou também que, apesar do aumento de casos de feminicídio em 2019, "apenas 2% das vítimas tinham B.O. anterior. Em menos da metade destes casos, a vítima tinha medida protetiva”.
"Muitas mulheres chegam à delegacia com sentimento de culpa e precisam se sentir fortalecidas"
“Eles te tratam como bicho”
A assistente administrativa Elaine Munari, de 34 anos, viveu em 40 dias o que classifica como a pior experiência de sua vida. “Foi um sonho, uma expectativa de viver como casal que se transformou em pesadelo e medo constante”, afirma. “O pior foi apanhar e sofrer abuso psicológico grávida.”
Elaine conheceu o ex-companheiro em 2018 e viveu com ele por nove meses. Nesse período, ficaram noivos e ambos saíram de Piracicaba, no interior de São Paulo, para viver em Blumenau, em Santa Catarina. “Ele tinha ciúmes do meu ex-marido e logo nos primeiros dias me agrediu com um puxão de cabelo e me colocou para fora de casa”, relata.
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Assustada, Elaine começou a enfrentar situações de violência física e psicológica quase diárias. “No mercado, ele me deu um soco na altura da coxa e um soco na cabeça”, lembra. As agressões passaram a ser constantes: “Ele me ameaçou com uma faca no pescoço e trancava as portas de casa para eu não sair. Ele queria que, no dia seguinte, eu demonstrasse amor e carinho”.
Mesmo depois de descobrir a gravidez, o ex-marido tentou sufocá-la com um saco plástico na cabeça. “Foi muito difícil porque eu estava longe da minha família, sentia vontade de voltar para casa, mas tinha vergonha. A gente sempre pensa que a pessoa pode mudar”, diz.
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Impedida de usar o celular, Elaine conta que o irmão desconfiou do isolamento e foi encontrá-la no aeroporto. “Peguei duas blusas, a cachorra e fui.” Somente quando retornou a Piracicaba que conseguiu, finalmente, procurar a polícia. “Fiz o boletim dia 8 de agosto do ano passado”, lembra. “Tinha todas as provas, conversas por aplicativo, fotos dos hematomas, mas me disseram que a delegacia de Blumenau seria responsável pelo caso".
A preocupação de Elaine é não saber o desfecho de sua denúncia. “Estou fazendo tratamento psicológico, me sinto injustiçada. Voltei para a casa dos meus pais, voltei a depender deles e ainda tenho que provar que tive esse relacionamento".
Questionada pela reportagem, a Delegacia da Mulher de Piracicaba afirmou que o boletim foi encaminhado para Blumenau. “Se tivesse acontecido aqui, o processo seria investigado aqui”, afirmou uma funcionária. “Não tenho como pedir uma medida protetiva se a agressão aconteceu em outro lugar”.
A orientação das autoridades policiais é que as vítimas registrem a violência na região em que o fato ocorreu. Na prática, porém, o medo e a possibilidade de perseguição do agressor impedem que esse registro ocorra. “As mulheres deixam as cidades com medo do agressor, não contam com a rede de apoio. Às vezes moram sozinhas com o agressor”, afirma Cláudia Patrícia de Luna Silva, presidente da Comissão da Mulher Advogada. “Nesse tipo de violência, há a prática de isolar a vítima dos ciclos sociais”.
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Segundo Cláudia, o problema está na falta de integração da rede de apoio à mulher. “Há um desmantelamento da rede que deveria funcionar com a delegacia, fórum, Ministério Público, saúde e vagas de emprego”. O que deve ser respondido, explica a advogada, é se, após o B.O., o problema está resolvido. “Nem sempre. Ainda virão uma série de etapas que a mulher precisará contar com advogados, defensores e toda a rede de apoio para não desistir. Essa continuidade ainda é um dos entraves da lei Maria da Penha”.
Uma opção que reúne todos os serviços num mesmo local é a Casa da Mulher Brasileira. Inaugurada em novembro de 2019, a unidade funciona 24 horas no Cambuci, no centro da capital. É a primeira no Estado de São Paulo e a sétima no país.
A Casa serve como porta de entrada para serviços especializados que pretendem garantir condições de enfrentamento da violência, fortalecimento da mulher e autonomia. No local, a mulher é atendida por uma equipe multidisciplinar, que envolve Delegacia da Mulher, Ministério Público, Defensoria Pública, Tribunal de Justiça e Guarda Civil Metropolitana, além de apoio psicológico e assistencial, até Central de Libras. Há ainda um alojamento para acolhimento provisório das vítimas em casos de iminência de morte.
Entraves enfrentados
A delegada Renata Cruppi afirma que, para evitar o desestímulo na hora de fazer o boletim de ocorrência, mulheres vítimas de violência podem optar por fazer o registro acompanhadas. “Uma solução seria irem acompanhadas por uma pessoa não envolvida emocionalmente. Para a pessoa que sofreu violência, a demora dá margem para ela começar a se questionar. Às vezes, só uma orientação já faz diferença para que ela não se sinta tão fragilizada”, afirma. Cruppi diz ainda que muitas chegam à delegacia com o sentimento de culpa. “Nesse momento, elas precisam se sentir fortalecidas.”
No estado, apenas 10 delegacias especializadas funcionam 24 horas e aos fins de semana. Em contrapartida, especialistas afirmam que é justamente aos sábados e domingos que ocorrem os casos de violência. Para Cruppi, os plantões nas delegacias normais têm condições de fazer este atendimento.
“Para uma delegacia ser 24 horas, a administração vê se há necessidade, se há recursos humanos e materiais. A meta, até o fim da gestão Doria, é que sejam ao menos 40 unidades com funcionamento ininterrupto no estado”, garante a delegada Jamila Ferrari.
A 1ª DDM de São Paulo foi a Sé, em 1985. A maioria das unidades funciona de segunda a sexta-feira das 9h às 19h. A advogada Ana Paula Freitas afirma, no entanto, que, apesar das dificuldades, as mulheres se sentem muito melhor acolhidas nas unidades especializadas.
*nomes fictícios para preservar a identidade das mulheres vítimas de violência