Primeiros meses do ano têm altas históricas de letalidade da PM em SP
PMs mataram 255 pessoas no 1º trimestre, registrando recorde, assim como em abril, com número mais alto desde 2006. Ainda houve aumento em maio
São Paulo|Guilherme Padin, do R7
O Estado de São Paulo somou registros históricos de aumento da letalidade policial nos cinco primeiros meses de 2020. O número de pessoas mortas por PMs teve o recorde desde 2006 para um mesmo mês e, no primeiro trimestre do ano, houve a maior marca para o período em todos os anos.
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Na visão de especialistas em segurança pública e direitos humanos ouvidos pelo R7, os dados dos primeiros meses apontam falhas graves da corporação, e também uma falta de interesse por medidas para combater e reduzir a violência policial.
“Avalio [as altas] com profunda tristeza. No momento que o Brasil tenta encontrar o seu caminho para superar o dilema da covid-19, temos uma PM atuando absolutamente fora da lei. É estarrecedor perceber este aumento. Não se justifica, pois há uma redução da presença nas pessoas da rua e uma redução presumida da criminalidade”, afirma Dimitri Sales, presidente do Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana).
As 255 pessoas mortas por policiais militares no primeiro trimestre de 2020 foram o recorde histórico para todos os mesmos períodos registrados pelo Governo de São Paulo em duas décadas. Abril deste ano teve 116 mortos por PMs, o segundo maior número da série histórica (iniciada em 2001) e maior desde maio de 2006, mês marcado por conflitos entre a facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital) e agentes do Estado.
Ainda houve aumento em maio, quando foram contabilizadas 71 mortes, 6% a mais que no mesmo mês de 2019.
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A redução presumida da criminalidade, citada pelo presidente do Condepe, se confirma nos dados: embora a Secretaria de Segurança Pública atribua parte do aumento no número de mortos por PMs à pandemia do novo coronavírus, as polícias paulistas prenderam menos pessoas, tiraram menos armas ilegais das ruas e até registraram queda no número de ações contra o tráfico durante o período de quarentena.
Na avaliação de Sales, a violência policial segue por dois caminhos, de modo geral: um estímulo direto à impunidade, “quando governadores premiam policiais envolvidos em chacinas, mesmo antes das ocorrências serem investigadas, e propagam esta violência durante suas campanhas”. E, além disso, uma opção política no país pela ‘institucionalização’ da violência de Estado. “A PM tem protagonismo nesse processo. Mesmo depois da ditadura militar, a violência de Estado nunca foi superada no Brasil”, comenta.
A desembargadora Ivana David, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), também lamenta os números, mas avalia que não necessariamente foram as mortes e a violência que aumentaram, senão as denúncias que tornaram-se mais frequentes, com a população identificando com mais facilidade os casos de violência policial.
“A violência é endêmica, não é de hoje. A polícia sempre foi violenta. O que mudou é que com a tecnologia da informação, onde as pessoas têm condição de gravar as abordagens, com a tecnologia de georreferenciamento de policiais e o trabalho da imprensa, temos circunstâncias que fazem com que o Estado identifique a violência que sempre aconteceu”, pontua.
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Ivana destaca a importância das gravações feitas por testemunhas de casos de violência policial, que ajudam nas apurações de crimes e abusos cometidos pelos agentes de segurança, e exemplifica situações que hoje facilitam a identificação desses casos.
“Antes o papel do BO sumia, a testemunha sumia, e hoje é tudo eletrônico e é possível encontrar as testemunhas. Se antes o policial dizia que não estava no local do fato, hoje a tecnologia pode mostrar se estava ou não. É uma união de aspectos que facilitam nessa identificação. As pessoas hoje gravam tudo. Detectamos isso (o aumento) porque a sociedade aprendeu”, afirma a desembargadora.
Quando o número de crimes diminui e ainda assim aumenta a letalidade policial, pondera Ivana, há um hiato a ser observado: “A conta não fecha. Precisamos de mais investimentos e melhor formação. A polícia precisa investir melhor na capacitação dos seus profissionais. O que tem sido feito é pouco”.
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Para Rafael Alcadipani, professor da FGV (Fundação Getúlio Vargas) e membro da Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a polícia está falhando no controle da letalidade. “Não vemos uma política focada na redução de letalidade. Embora a polícia diga que estão chegando mais rápido na ocorrência [por conta da pandemia], creio que falta um controle mais forte da letalidade policial em São Paulo”, observa Alcadipani, que avalia os números de mortos por PMs este ano como “absolutamente inaceitáveis”.
Alinhado a Alcadipani, Dimitri Sales também diz não perceber quaisquer indicativos de mudança no sentido da redução da letalidade e violência policial. As medidas anunciadas por João Doria desde a tragédia que ocorreu em Paraisópolis, com a revisão de protocolos da PM, ou o recente retreinamento anunciado após seguidos casos de violência, são “meramente comerciais, ficam limitadas ao campo discursivo”.
Falta, segundo ele, empenho em tornar a disciplina de direitos humanos um conteúdo formador do perfil dos policiais militares. “Só vamos solucionar a violência e a letalidade policial quando o Estado brasileiro e os estados membros fizerem uma opção por construir um outro modelo de segurança pública e intervenção policial”, afirma Sales.
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Perguntado pela reportagem sobre como avalia as altas nos números e a qual motivo atribuiria estes dados, o ouvidor das polícias em São Paulo, Elizeu Soares Lopes, não respondeu aos questionamentos e apenas disse que conversa com o comando da Polícia Militar e a cúpula da Secretaria de Segurança Pública para questioná-los sobre medidas de combate à violência policial. Lopes comentou, ainda, que observa que a PM tem punido os policiais flagrados em situações irregulares. “Vou continuar cobrando providências permanentemente”, afirmou.
Outro lado
A reportagem pediu um posicionamento à Secretaria de Segurança Pública sobre os aumentos nos dados de letalidade policial. Atribuindo parte das altas nos índices à pandemia, a SSP respondeu em nota:
A SSP, desde o início da atual gestão, tem reforçado as ações de combate à criminalidade e proteção às pessoas em todo o Estado. A partir da análise dos indicadores criminais, os programas de policiamento são posicionados em áreas com maior incidência de delitos de forma a coibir essas práticas. Só nos primeiros cinco primeiros meses do ano, mais de 73 mil criminosos foram detidos no Estado, sendo cerca de 48 mil em flagrante. Com o menor tempo de resposta –intensificado em razão da menor circulação de pessoas neste período de pandemia –os policiais, muitas vezes, chegam aos locais de crime com a ocorrência ainda em andamento, com os criminosos armados e subjugando as vítimas. O confronto não é uma opção da polícia, que atua para prender e levar à Justiça àqueles que infringem a Lei
O compromisso das forças de segurança é com a vida, razão pela qual medidas para a redução de mortes são permanentemente estudadas e implementadas. Por determinação da SSP, todos os casos de MDIP são investigados pela Polícia Civil e pela PM, além de comunicados ao Ministério Público. As ocorrências desta natureza são analisadas para verificar a conduta dos policiais e avaliar a adoção de alternativas de intervenção para evitar o mesmo resultado em episódios futuros.
Não há complacência com o erro. Só nos primeiros cinco meses do ano, mais de 70 policiais militares foram demitidos ou expulsos da instituição. Além disso, nesta quarta-feira (1), teve início o programa de treinamento envolvendo todos os níveis hierárquicos, visando a reforçar os conhecimentos e técnicas da instituição.
São retomados conceitos de polícia comunitária, direitos humanos, abordagem policial, gestão de ocorrências, polícia judiciária, entre outros temas relacionados. O governo do estado também iniciou a instalação de 500 câmeras corporais nos uniformes dos agentes de segurança para dar mais transparência às ações da polícia.