Sem controle efetivo, retreinar PM é insuficiente para conter abusos
Especialistas reconhecem formação de ponta, mas há necessidade de reforçar supervisão e investigação e rever técnicas de abordagens e uso da força
São Paulo|Fabíola Perez, do R7
Com os olhos inchados e vermelhos, Weslei da Fonseca Guimarães pede paz, após ter sido agredido com socos, cassetete e chutes por policiais militares, no bairro do Jaçanã, na zona norte de São Paulo. Weslei não dorme direito com receio de que batam à sua porta. De cadeira de rodas e muletas, a mulher, que prefere não ter o nome divulgado por medo, afirma que sente medo só de ver uma viatura policial por perto depois de ter sido pisada e arrastada por um PM. A única coisa que a dona de um bar de Parelheiros, na zona sul da capital, espera é nunca precisar de um policial na vida.
Um vídeo que circulou nas redes sociais mostra a ocasião em que um motoboy é sufocado e agredido por policiais militares na avenida Rebouças, em Pinheiros, na zona oeste de São Paulo. Ao cair no chão, o entregador repete a célebre frase que percorreu o mundo na voz de George Floyd, assassinado por policiais nos Estados Unidos, mas parece não ecoar por aqui. “Eu não consigo respirar”, disse o motoboy dominado pela polícia.
Guilherme Silva Guedes, de 15 anos, não pode mais contar o que enfrentou ao ser morto voltando da casa da avó na zona sul da capital. Mas o choque ao perceber que o corpo torturado pela polícia fez o bairro da Vila Clara arder em chamas de protestos. O garoto teve o sonho de se tornar piloto de avião interrompido. Weslei, Guilherme, a dona do bar e o motoboy têm em comum o fato de terem tido a vida traumatizada – em alguns casos, interrompida – pela Polícia Militar de São Paulo.
"A implementação na ponta é o grande ponto e isso é um fator muito mais preocupante do que a falta de treinamento"
Em resposta à escalada de violência e mortes envolvendo policiais que o governador de São Paulo, João Doria, afirma serem “pontuais”, a Secretaria de Segurança Pública do Estado declarou que pretende retreinar todos os agentes de segurança da Polícia Militar. Seria suficiente para estancar os casos de abuso e mortes envolvendo policiais?
De acordo com um levantamento realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de pessoas mortas por policiais militares e civis no estado de São Paulo cresceu 31% entre janeiro e abril deste ano na comparação com o mesmo período de 2019.
Os números do quadrimestre foram puxados por uma disparada das mortes em abril deste ano, quando 119 pessoas foram mortas pelas polícias Militar e Civil no estado. Isso equivale a uma alta de 53% na comparação com as 78 mortes registradas em abril de 2019. Durante todo o mês de abril, vigorou no estado de São Paulo uma quarentena decretada pelo governo estadual.
Para o advogado, membro do Grupo Tortura Nunca Mais e conselheiro do Condepe (Conselho Estadual de Direitos Humanos) Ariel de Castro Alves, o governo de São Paulo e as autoridades da Secretaria de Segurança Pública e da Polícia Militar minimizam a gravidade dos casos, tratando como “meros excessos” e “casos isolados” abusos e violências que se repetem diariamente em regiões periféricas.
“O próprio governador João Doria, desde a campanha, estimulou a violência policial, afirmando que a polícia estaria autorizada para matar suspeitos e que contrataria os melhores advogados para a defesa dos policiais acusados de excessos e mortes”, diz Alves. “Ele também condecorou policiais envolvidos em uma ocorrência com várias mortes em Guararema no ano passado. Está aí o resultado do incentivo dado à violência policial. Uma escalada de brutalidades e cenas chocantes de abusos policiais”, afirma.
Supervisão e mecanismos de controle
Para entender os gargalos e falhas da atuação da Polícia Militar, olhar somente para o treinamento dos agentes de segurança, segundo especialistas, não é suficiente. A conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e ex-diretora da Secretaria Nacional de Segurança Pública Isabel Figueiredo explica que, desde a década de 1990, a Polícia Militar de São Paulo tem uma carga horária razoável de disciplinas como Direitos Humanos e chegou a ser inovadora em quesitos como métodos de tiro e redução de letalidade. “Historicamente, existiram algumas inovações, mas já são coisas consolidadas”, diz a advogada.
Esse treinamento, porém, é insuficiente. “A implementação na ponta é o grande ponto e isso é um fator muito mais preocupante do que a falta de treinamento”, afirma. Isabel explica que é preciso admitir que o componente racial está presente na atuação da PM, além do funcionamento dos mecanismos de controle. “O que temos visto são situações de abuso quando temos mecanismos de controle muito frágeis”, afirma Isabel. “Inquéritos que estão parados. Treinamento, supervisão e controle têm que andar juntos.”
"Credito o aumento dos casos de violência e morte policial mais à fragilidade dos mecanismos de controle"
A advogada afirma ainda que a Polícia Militar de São Paulo foi a primeira do país a trabalhar com POPs (Procedimentos Operacional Padrão), espécies de manuais de conduta para cada atuação policial. “Esse mecanismo foi inovador porque dá segurança para o próprio policial saber se agiu corretamente. É um mecanismo de proteção e defesa para o policial. Porém, nem sempre é automática a transformação desse conhecimento em prática.”
Um dos aspectos centrais, segundo a especialista, é que exista no dia a dia um mecanismo de cobrança de execução desse procedimento. “Sargentos e oficiais devem circular para verificar pontos de parada policial, como são realizadas as abordagens. Deve ocorrer o controle propriamente dito quando as coisas saem erradas”, diz. “Temos casos estarrecedores de violência policial. Hoje eles vêm mais à luz, não ficam apagados como antes.”
Para Isabel, a Ouvidoria, órgão que tem como atribuições ouvir, encaminhar e acompanhar denúncias, reclamações e sugestões, passa por um momento de fragilização. “Poderia ter um protagonismo maior. Atualmente, ela está sendo mais pautada do que pautando discussões”, afirma. O órgão não investiga as denúncias e reclamações recebidas, mas encaminha à Corregedoria e acompanha a apuração. “Atua como mera recebedora e repassadora de denúncias”, afirma Alves, do Condepe.
“Credito o aumento dos casos de violência e morte policial mais à fragilidade dos mecanismos de controle. Os policiais não estão sendo treinados de forma errada, mas precisam de uma supervisão sobre as atividades”, diz a advogada.
Abordagem policial e uso da força
Apesar de considerar o treinamento da Polícia Militar um dos melhores do mundo, o coronel reformado e ex-Secretário Nacional de Segurança Pública José Vicente afirma que há dois aspectos principais que devem ser revistos: a abordagem policial e o uso da força. “O treinamento é muito sofisticado, mas não quer dizer que não haja necessidade de uma revisão permanente”, afirma. “Não se pode entender que o retreinamento é para todo mundo. Não há necessidade de se retreinar a tropa toda.”
A abordagem, segundo coronel Vicente, é realizada em condições consideradas suspeitas ou em locais com incidência de crime. “A partir da abordagem, que não pode ser truculenta, vem uma série de procedimentos”, diz. Para ele, os treinos de uso da força também devem passar por uma revisão para que se evitem os problemas que surgem nas abordagens.
"A redução do trânsito deu mais agilidade para a ação das polícias. Houve aumento no número de apreensões de drogas%2C mais confrontos e%2C consequentemente%2C mais mortes."
Segundo o coronel Vicente, a pandemia é o principal motivo para o aumento das mortes cometidas por policiais militares. “A redução do trânsito deu mais agilidade para a ação das polícias. O atendimento acaba ocorrendo mais rapidamente. Houve aumento no número de apreensões de drogas, mais confrontos e, consequentemente, mais mortes”, afirma.
Para Vicente, o problema da prática é que ela traz “uma carga emocional muito forte”. “Traz os instintos mais primitivos que são o medo e a raiva, mas o policial só pode reagir indo para a frente da ameaça à sua integridade ou a de terceiros.” O policial atira, segundo o coronel, para neutralizar a ameaça. Por isso, segundo ele, são mais utilizadas armas com poder maior de impacto do que de perfuração. “São momentos muito rápidos e de perigo muito intenso. O policial é treinado para dar dois tiros no peito porque é improvável que acerte os braços ou as pernas, mas dar cinco tiros na cabeça não é justificável.”
Sobreposição das polícias
O presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo, Gustavo Mesquita, afirma que a Polícia Civil, responsável pelas investigações criminais, possui uma estrutura insatisfatória. “Os órgãos policiais não conseguem exercer suas funções porque não têm a devida valorização do governo de São Paulo”, diz. Ao exercer suas atividades, porém, ele ressalta que é importante que “cada instituição atue sem avançar nas atribuições alheias.”
Isso porque uma decisão do Tribunal de Justiça Militar autorizou que policiais militares realizem a apreensão de objetos de crimes de morte decorrentes de intervenção militar. “Isso coloca dificuldades à Polícia Civil na investigação de crimes conta a vida, já que os objetos do crime são fundamentais”, diz Mesquita. “Isso manda uma mensagem de impunidade à população, justamente quando vemos uma escalada de crimes envolvendo policiais militares.”
Segundo o presidente da associação, a investigação da Polícia Civil em caso de resistência seguida de morte é uma garantia ao cidadão e aos policiais envolvidos. “A ação pode ser legítima, mas precisa da investigação. Os policiais militares têm de se preocupar em realizar as suas funções e não em usurpar funções alheias. Cada instituição deve atuar de forma independente e isolada, se complementando quando for o caso. “Defendemos que ambas as corregedorias das instituições tenham uma atuação forte e contundente para punir todo e qualquer abuso da corporação cometidos por policiais.”
Celular como arma cidadã
O advogado do Condepe, Ariel de Castro Alves, afirma que o celular tem se tornado um importante instrumento para denunciar a violência policial em regiões periféricas. “Os celulares viraram as únicas armas das comunidades contra a crescente violência policial. Curioso é que a população tenha que se proteger de membros da instituição que existe com a finalidade de proteger a própria população e a sociedade.”
Para ele, o programa de retreinamento policial é uma estratégia de marketing do governo de São Paulo. “É uma tentativa de o Estado dar uma resposta à sociedade diante dos recentes casos de violência, mas não terá nenhuma efetividade. Enquanto não houver a desmilitarização continuaremos a ter uma polícia violenta, seletiva, racista e discriminatória.”
"Curioso é que a população tenha que se proteger de membros da instituição que existe com a finalidade de proteger a própria população e a sociedade."
Alves aponta ainda as dificuldades nas apurações que envolvem policiais militares. O corporativismo, segundo ele, prevalece, já que são realizadas pelos próprios colegas de agressores visando legitimar as ações violentas sem reprovação ou punição. "A maioria das apurações são feitas nos próprios batalhões dos quais os acusados fazem parte e o corporativismo acaba acobertando as condutas violentas", afirma o advogado.
“Uma polícia violenta e descontrolada não deve interessar à sociedade, que paga os salários dos policiais. Polícia eficiente não é aquela que abusa, tortura e mata, e sim a que evita e esclarece crimes”, afirma. “No entanto, desde a ditadura, os policiais não se sentiam tão encorajados para o cometimento de abusos. Eles veem um cenário favorável para a violência diante dos estímulos à violência policial.”
Ao invés de propor um programa de retreinamento, mais eficiente seria, segundo ele, fortalecer, ampliar e reestruturar a ouvidoria e as corregedorias. “Ter o Ministério Público fiscalizando as ações policiais e as apurações contra os maus policiais é um dos passos fundamentais para enfrentamento da escalada da violência policial”, diz.
“As autoridades devem se manifestar publicamente contra a violência policial e não propor que policiais fiquem impunes com a ampliação das situações de legítima defesa como excludentes de ilicitude.” Enquanto isso, Wesleis, Guilhermes, donas de bares, motoboys e outros tantos Floyds esperam uma resposta no Brasil.
Outro lado
Em nota enviada ao R7, a SSP-SP (Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo) afirma:
"A Polícia Militar conta com um rigoroso sistema de Justiça e Disciplina, que assegura a qualidade na prestação de serviços a sociedade e a investigação de todas as denúncias que envolvam seus agentes. A Corregedoria da instituição, por meio de unidades descentralizadas, está presente em todas as unidades instaladas nos 645 municípios paulistas, alcançando os mais de 85 mil policiais militares. O processo de depuração da instituição é forte e todos os inquéritos policial-militares (IPM) instaurados seguem estritamente os trâmites e regramentos impostos pela legislação vigente.
Os procedimentos operacionais padrão (POP) da instituição são permanentemente avaliados e aprimorados pelo Comando da PM e seus órgãos diretivos, objetivando sempre a defesa da vida, da integridade física e a dignidade da pessoa humana. Além da formação nas respectivas academias, o conteúdo dos POPs é regularmente abordado com os agentes policiais durante as preleções prévias aos serviços operacionais.
Desde o último dia 1, a PM paulista iniciou um treinamento técnico-operacional para todos os níveis hierárquicos da instituição. Mais de 50.000 policiais, entre oficiais e praças, já passaram pelas atividades, cujo objetivo é aprimorar os processos de atuação da corporação. Dentre os temas abordados estão Polícia Comunitária, Direitos Humanos e Cidadania, Abordagem Policial, Gestão de Ocorrência, entre outros. Paralelamente ao curso, o governo do estado iniciou a instalação de câmeras corporais nos uniformes dos agentes de segurança para dar ainda mais transparência às ações da polícia."