Exigir vacina de covid para acessar lugares pode ser pouco eficaz
Infectologista afirma que vacinação não é capaz de barrar transmissão em locais onde certificado sanitário seja exigido
Saúde|Fernando Mellis, do R7
Passados alguns meses desde o início das campanhas de vacinação contra a covid-19, alguns países já começam a traçar estratégias para voltar à vida normal com menor risco possível, mesmo com parcelas da população que não pretendem se imunizar.
Na França, a entrada em vigor em agosto de um passe sanitário provocou protestos. A lei prevê que só poderão entrar em locais como lojas, bares e restaurantes pessoas que tiverem completado a vacinação ou com teste negativo de covid-19.
Grécia e Itália também possuem iniciativas governamentais no mesmo sentido.
Aqui no Brasil, o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, anunciou na semana passada que pretende liberar casas noturnas e festas com 50% da capacidade de público a partir de 2 de setembro e com 100% em outubro. A exigência será comprovar a vacinação por meio do aplicativo ConecteSUS.
Desde o início, sabe-se que as vacinas contra covid-19 disponíveis hoje reduzem significativamente o risco de doença grave, internações e mortes, mas não são capazes de frear a transmissão.
Ou seja, uma pessoa com certificado de vacinação ainda está sujeita a pegar o vírus e transmiti-lo.
Por conta disso, na avaliação do infectologista e professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista) em Botucatu Alexandre Naime Barbosa, a adoção de certificados sanitários não garante que haja locais sem coronavírus.
"Esse tipo de medida pode fazer sentido como uma forma, vamos dizer assim, de coação para a pessoa se vacinar, mas não faz sentido no que tange o lugar onde ela está sendo exigida. [...] Não faz o menor sentido exigir um cartão de vacinação para entrar em um lugar público porque posso estar vacinado e transmitir. Em um lugar público, o que eu preciso fazer? Usar máscara e ter distanciamento social."
Para o epidemiologista e professor da Faculdade de Saúde Pública da USP (Universidade de São Paulo) Eliseu Waldman, a exigência de um certificado de vacinação para acessar locais do dia a dia cria, acima de tudo, discussões "éticas e filosóficas".
"São questões éticas e questões, vamos dizer assim, filosóficas, de você poder ou não intervir nas opções de cada um. Isto versus o interesse da maioria ou da saúde pública. É uma discussão complicada, a não ser em regimes muito autoritários. Eu acho que a China fez isso e, pelo menos, não se teve notícia de reclamação."
A França tem 64% da população adulta completamente vacinada, mas enfrenta uma resistência para fazer com que a campanha avance. Países europeus e os Estados Unidos têm movimentos antivacina fortes — e não é de hoje.
Mas por lá parece ter surtido algum efeito o anúncio das regras para acessar determinados locais. Em 12 de julho, após o presidente Emmanuel Macron afirmar que o passe sanitário entraria em vigor em agosto, mais de 900 mil franceses agendaram a vacinação em um único dia.
Esta situação, na visão do epidemiologista, dificilmente deve se repetir no Brasil, país que tem uma tradição de grande adesão às campanhas de imunização.
Mesmo com as duas doses, acrescenta o professor da Unesp, o comprovante de vacinação não será um passaporte para voltar à vida normal que havia antes da pandemia.
"Não estamos caminhando para um modelo de eliminação da doença como a gente tem com o sarampo, com a rubéola, porque as vacinas não são efetivas a ponto de evitar a transmissão. Nós não vamos viver um cenário de eliminação da covid a curto e médio prazos. Vamos ter um cenário de mitigação, de coabitação com o vírus. O vírus vai continuar circulando, só que o risco de adoecimento e óbito vai cair muito por conta das pessoas vacinadas."
Waldman concorda que "nenhum lugar vai estar livre de covid".
"Agora que está todo mundo vacinado podemos voltar ao normal? Isso não é verdade. As medidas gerais de proteção, máscara, distanciamento, higienização, vamos ter que manter por um bom tempo até a poeira baixar. E ver qual vai ser o impacto das variantes que forem surgindo."
Barbosa ressalta o efeito coletivo da vacinação, mas alerta que o surgimento das variantes, algo comum em vírus com circulação intensa, pode ser uma ameaça.
"Quanto mais pessoas vacinadas, menor a circulação do vírus, e com isso, menos chance de mutação. Mas com essa variante Delta, que é muito mais transmissível que a Gama [Brasil] e que a Alfa [Inglaterra], a gente está vivendo outro cenário. Foi um verdadeiro banho de água fria em relação a eliminar a transmissão. E existem alguns indícios de que ela pode causar uma doença mais grave."
O CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças) dos Estados Unidos, informou na semana passada, por meio de um documento interno divulgado pela imprensa, que indivíduos completamente vacinados podem transmitir a variante Delta com a mesma intensidade dos não vacinados. A diferença é que o risco de doença grave e morte é menor.
Os Estados Unidos, com 49,5% da população completamente vacinada, começam a rever o afrouxamento de algumas regras, inclusive a da liberação do uso de máscaras em ambientes fechados.
"No Brasil, estamos longe do ideal [de vacinação]. Temos muita gente com somente uma dose, a variante Delta é bastante transmissível, inclusive causa doença em quem está só com uma dose", acrescenta o professor da Unesp.
Segundo o Ministério da Saúde, cerca de 20% dos brasileiros estavam completamente imunizados até a última sexta-feira (30).