Apesar de não haver solução fácil nem mágica para as mazelas estruturais do Brasil, a transformação de bens do mundo real em ativos digitais (tokenização) tem se mostrado uma forma bem-sucedida de descentralizar o acesso ao capital. Trata-se de importante passo para superar a incômoda contradição entre sermos um país rico em recursos, mas sufocado pela burocracia, pelos juros altos e por um sistema financeiro que exclui os pequenos.O crédito e o investimento se tornam mais baratos quando transformamos imóveis, safras ou cotas de empreendimentos em representações digitais registradas em blockchain (de modo permanente, transparente e imutável). As obrigações ficam automatizadas por meio de contratos inteligentes, que asseguram o cumprimento das obrigações. Um exemplo de como isso ocorre na prática tem sido dado pelo agronegócio, por meio da emissão de ativos digitais lastreados em safras futuras, áreas produtivas, créditos de carbono e Cédulas de Produto Rural (CPRs digitais) — títulos de crédito que representam a promessa de entrega de produtos agrícolas. Como resultado, produtores que antes ficavam à margem do crédito tradicional, agora podem captar recursos com rapidez, previsibilidade e segurança jurídica, inclusive em mercados internacionais.No setor imobiliário, um dos mais prejudicados pela burocracia brasileira, empreendimentos passaram a ser fracionados em tokens digitais, permitindo que pequenos investidores possam comprar partes de ativos de alto valor, com liquidez e rentabilidade. Até 2035, a tokenização de imóveis deverá movimentar cerca de US$ 4 trilhões globalmente, segundo estudo da Deloitte — uma previsão que transforma a tendência em rota inevitável.A tokenização também favorece o financiamento de projetos, pessoais ou profissionais. Usando tokens como garantia, é possível acessar linhas de crédito com taxas mais baixas sem depender do sistema bancário local. É o universo das finanças descentralizadas (DeFi), que vem crescendo justamente por oferecer alternativas reais e menos onerosas ao capital tradicional.Apesar de todo esse ecossistema ainda não ser plenamente consolidado no país, existe a vantagem de já termos pilares regulatórios, como a Lei nº 14.478/2022, e a instrução 88 da CVM (Comissão de Valores Mobiliários), que permitem estruturar tokens dentro das regras do mercado de capitais, além de projetos de lei em andamento mais consolidados e completos, alinhados às melhores práticas internacionais. O Brasil possui, portanto, uma base robusta que viabiliza inovação com segurança jurídica.O Brasil tem potencial para estar entre os líderes da transformação econômica global que já está em curso. Mas, para isso, os setores produtivos, o Judiciário e os reguladores precisam entender que tokenizar é libertar ativos que estavam presos a um modelo financeiro ultrapassado. A grande oportunidade é fazer com que o país se torne uma referência mundial de inclusão financeira, geração de riqueza e segurança contratual baseada em tecnologia.A tokenização é, portanto, muito mais do que uma inovação tecnológica. Ela traz um novo paradigma de acesso ao capital, no qual a descentralização se torna infraestrutura econômica, uma arquitetura de investimentos em que ativos físicos ganham vida digital, acessível, fracionada e com liquidez global.*Matheus Puppe é fundador do escritório M.Puppe & Associados, mestre e doutorando em Direito Digital pela Universidade de Frankfurt e advogado militante no Brasil, Alemanha e Portugal