Argentina: caso Nisman reacende desconfiança sobre agentes de inteligência
Argentinos voltam a priorizar encontros pessoais a conversas telefônicas
Internacional|BBC Brasil
A misteriosa morte do promotor argentino Alberto Nisman, no dia 18 de janeiro, reacendeu a discussão na Argentina sobre o sistema de inteligência no país e dos supostos arapongas que, segundo denúncias de governistas e de opositores, atuariam nas sombras do poder.
Nisman foi encontrado morto em sua casa quatro dias após ter denunciado um suposto esquema -que envolveria a presidente, Cristina Kirchner, e outros políticos argentinos- para acobertar investigações de um atentado em Buenos Aires em troca de um acordo comercial com o Irã. O governo nega a acusação.
Especula-se que a morte esteja ligada a uma disputa interna dos serviços de inteligência do país. Nos últimos dias, o tema foi destaque nos programas de televisão, sites e jornais argentinos.
Também levou os argentinos a recordarem suspeitas de espionagem e métodos de prevenção contra os supostos grampos telefônicos e microfones escondidos em tempos democráticos.
Em setembro do ano passado, por exemplo, manifestantes desconfiaram de um homem que acompanhava um protesto numa avenida da província de Buenos Aires e passaram a acusá-lo de “infiltrado”, como mostraram as TVs. “O espião que age nos protestos”, publicou o jornal Perfil.
Jorge Bergoglio, o Papa Francisco, teria o hábito de aumentar o som do rádio para evitar que os “servicios” (arapongas) ouvissem suas conversas com convidados quando era cardeal de Buenos Aires, de acordo com a imprensa local. Ele costumava se reunir com políticos, analistas e outras figuras renomadas.
Após a comoção com a morte do promotor, surgiram outras acusações de pessoas supostamente espionadas em diferentes ocasiões.
“Este homem espionava nossas manifestações, mas não sei para quem”, disse um ativista sobre Diego Lagomarsino, técnico de informática e último a ver o promotor vivo, como publicou o jornal La Nación, nesta sexta-feira.
Encontros pessoais
A sombra dos agentes é tema frequente entre empresários e políticos em Buenos Aires. Pessoas influentes na sociedade local voltaram a recorrer a encontros pessoais em vez de usar o telefone.
Ao canal C5N, o especialista em questões de segurança e deputado estadual Marcelo Sain, que é governista, disse que existem serviços de inteligência que funcionariam dentro da Polícia Federal, do Exército e da Secretaria de Inteligência (antes chamada SIDE e agora SI).
Ele afirmou que estas estruturas “nem sempre trabalham a serviço do Estado” e que “agentes gravam conversas com ou sem autorização judicial”.
“Na Polícia Federal, esta inteligência funciona graças a um decreto de 1963 e que continuou em vigor. Só ali existem mais de mil agentes. Existem agentes de inteligência no Exército e na própria SI, que atuam fora do sistema legal”, disse o parlamentar.
Herança da ditadura
Sain, do partido Nuevo Encuentro, foi responsável pela criação da Polícia Aeroportuária da Argentina quando o presidente era Nestor Kirchner (2003-2007), que morreu em 2010. Ele a deputada opositora Patricia Bullrich, do Unión PRO, disseram que a herança dos arapongas deixada pela ditadura ainda é uma “dívida” não resolvida na democracia.
“Em vez de cuidarem dos cidadãos, do Estado, eles se preocupam em bisbilhotar a vida das pessoas”, disse Bullrich.
Num artigo no jornal Clarin, o diretor da Associaçao dos Direitos Civis (ADC), Torcuato Sozio, disse que a ramificação de agentes de inteligência “é um quisto que ainda resta dos tempos da ditadura”.
Em uma entrevista ao jornal Página 12, o promotor de Justiça Félix Crous disse que existem “mitos e incertezas” na área de inteligência da Argentina. E contou que um ex-secretário da então SIDE Gustavo Beliz tentou reformar a Secretária de Inteligência e “passou a ser perseguido por agentes e juízes”, o que o teria levado, disse, a morar fora da Argentina.
Beliz tinha acusado agentes de inteligência que agora tiveram o nome citado por suposto envolvimento na morte do promotor Nisman.
Além de ser alvo de denúncias por parte de políticos e ONGs locais, o sistema de vigilância da Argentina já foi destacado até por Julian Assange, fundador do Wikileaks. Segundo ele, a Argentina tem o sistema de vigilância "mais agressivo" entre todos os países de tamanho médio da América Latina.
‘Fogo amigo’
Na segunda-feira, 26, oito dias após o promotor ter sido encontrado morto, a presidente Cristina Kirchner sugeriu em cadeia nacional de rádio e de televisão que poderia estar sendo ela mesma alvo do pessoal de inteligência insatisfeito com a reforma que começou a implementar em dezembro na ex-SIDE.
Segundo a presidente, “setores do próprio governo” seriam responsáveis por passar informações suas, como a de seu patrimônio, para a imprensa. Cristina afirmou que o serviço de inteligência manteve, na essência, a mesma estrutura que tinha durante o regime militar (1976-1983).
Ela disse que integrantes do serviço de informação começaram a tentar afetar uma tentativa de acordo entre a Argentina e o Irã passando dados aos jornalistas – o possível entendimento era investigado por Nisman.
“Fizeram todo tipo de denúncia contra esta presidente, como nunca ocorreu em tempos democráticos. Falaram em montanhas de dinheiro, em contas secretas no exterior, em lugares exóticos. E estas informações partiam de setores do próprio governo”, disse, sugerindo serem iniciativas dos agentes de inteligência.
Cristina anunciou que extinguirá a SI e criará uma agência federal de inteligência. Na imprensa local, já especula-se sobre uma possível reação dos arapongas contra a iniciativa.
Morte de Alberto Nisman pode ter envolvimento do serviço secreto iraniano, diz jornal