Mercado antigo de Jerusalém vira centro de convivência entre grupos
Com origem no Império Bizantino, há mais de 800 anos, o famoso "shuk" reflete muitas complexidades da Cidade Velha
Nosso Mundo|Eugênio Goussinsky, do R7, em Jerusalém (Israel)*
As lendas se misturam à realidade no mercado árabe de Jerusalém, o Shuk (mercado, em árabe). Atualmente, em meio a ruelas apertadas com lojinhas vendendo especiarias, camisetas, trajes árabes, lembranças cristãs e judaicas, a tecnologia pode ser vista no celular do senhor de turbante sentado pacientemente em frente ao seu comércio.
O Shuk sempre passou por mudanças, mas manteve uma essência que se mistura ao aroma de especiarias do local. Cada novidade, é claro, vem cercada de reclamação, como em 1931, quando foi construída a terceira seção deste mercado que surgiu há mais de 800 anos, nos tempos do Império Bizantino.
Com a nova seção se multiplicaram reclamações dos antigos comerciantes, temerosos em ver seus negocios prejudicados.
Por sua antiguidade, o mercado reflete muitas das complexidades de Jerusalém. Muitos palestinos, porém, estão bem inseridos no ambiente. Outros trazem para lá sinais do conflito com Israel.
Nassr, 42 anos, é um dos que gostam da vida por lá. É um comerciante cujo olhar pacífico prevalece por de trás dos óculos. Diz nunca ter tido problemas de convivência com judeus ou outros grupos.
Leia também
"Em todo segmento há os bons e os maus. É do ser humano. A imagem de conflito, que existe, é ampliada pela mídia. Eu namoro com uma moça judia, sempre convivi bem com todos os povos, desde que haja o respeito", afirma.
Enquanto estampa uma camiseta, ressalta que o Shuk se tornou um excelente negócio para a prefeitura de Jerusalém. E mostra uma conta de luz, declarando que não é fácil o comércio local, com muita concorrência e nem sempre com a quantidade de vendas ideal.
"Olhe o valor que pago por esse espaço pequeno: 330 dólares (R$ 1.250,00) por mês. É uma fortuna, a prefeitura fatura bastante com nosso negócio. De impostos, pago mais ou menos 700 dólares (R$ 2.600,00) por mês", explica.
Enquanto ando pelo chão de pedras, vejo como eram preconceituosas algumas frases ditas sobre o local nos anos 70, 80 e 90. Como as que envolvem os barbeiros. Alguns falavam que era um ato de coragem fazer a barba no Shuk, em meio a tensão entre judeus e árabes.
Mas o barbeiro Sami, de 45 anos, até me convida para um café enquanto raspa a lateral do cabelo de um menino, bem ao estilo moderno. Mantém o local do mesmo jeito que herdou, de seu pai, Awad, que ainda atua.
As únicas novidades são alguns equipamentos um pouco mais modernos, como o barbeador elétrico e um sistema de iluminação mais eficaz no espelho.
Iluminação que já permite que o velho tabu de limitar o horário de passeio no mercado até o início da tarde seja superado.
Hoje, de noite, as ruas ficam abarrotadas de turistas, andando lentamente e observando os produtos sob a luz elétrica que foi instalada há alguns anos.
Observado pelo pai, Sami conta que foi seu avô quem abriu a barbearia.
"Aqui está a minha vida, tenho algumas queixas da rotina aqui, mas no geral estou feliz. Nossa situação poderia ser melhor, mas meu trabalho me mantém satisfeito. As resoluções dos problemas estão em outra alçada."
Mais adiante, quase na entrada do quarteirão judaico, o vendedor da barraca de frutas é mais hostil. A desconfiança faz parte da vida dele. Assim que cumprimento seu irmão, que está sentado rente ao muro, ele me pergunta se está acontecendo alguma coisa.
E se nega a dar qualquer resposta sobre suas perspectivas e sua vida no local. "Não, não, sem perguntas, sem respostas", diz, com uma revolta contida no olhar.
Conflitos, apesar de ainda existirem, têm sido raros. Há segurança no local, com guardas se misturando aos viajantes e comerciantes.
No geral, prevalece a convivência daqueles que fazem do mercado um ponto de passagem para seus destinos na Cidade Velha: cristãos, judeus, muçulmanos e armênios.
E se somarmos o otimismo de Nassr, a ponderação de Sami e a revolta do vendedor de frutas e depois dividirmos por três, chegaremos a conclusão de que a moderação dá o tom em Jerusalém, estimulada por aqueles que não negam a existência alheia. Até precisam dela como solução. Para seus negócios e para suas próprias vidas.
*O jornalista viajou a convite do Ministério das Relações Exteriores de Israel
Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.