Especial Cracolândia: operações se multiplicam, não solucionam problema e espalham o ‘fluxo’
Com ação policial em maio, usuários de drogas se dispersaram pelas ruas do centro, aumentando a insegurança
São Paulo|Letícia Dauer, do R7
A cada dez dias a polícia realizou uma operação na Cracolândia no decorrer deste ano. “O problema foi terceirizado para a Polícia Civil. Temos duas vítimas nesse processo: os usuários de drogas e as pessoas que moram e trabalham no centro”, afirma o promotor de Justiça dos Direitos Humanos Arthur Pinto Filho.
Em 2022, a Polícia Civil, com apoio da Polícia Militar e da Guarda Civil Metropolitana, realizou 34 ações decorrentes da Operação Caronte, que tem como objetivo o fim do tráfico de drogas e da Cracolândia.
Um levantamento da 1ª Delegacia Seccional do Centro, responsável por conduzir as investigações, mostra que pelo menos 179 pessoas foram presas e 954 usuários foram autuados pelo consumo de crack desde o início das operações, em junho de 2021.
Há mais de 30 anos a Cracolândia resiste no centro de São Paulo, sendo alvo de sucessivas operações policiais em diferentes gestões de governadores e prefeitos. Para especialistas e organizações sociais, essas ações se mostram ineficazes, além serem violentas contra as pessoas em situação de rua.
“É uma solução que serve apenas como resposta imediata para a opinião pública. Qualquer solução simples para um problema complexo é política de governo”, critica Aluízio Marino, do Labcidade da FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo).
Multiplicação do fluxo
Até o mês de maio, o fluxo — termo usado para a concentração de usuários de drogas — estava localizado na praça Princesa Isabel. Com a megaoperação da Polícia Civil, o grupo se espalhou no centro de São Paulo para bairros como República, Santa Cecília, Luz e Campos Elíseos, criando pelo menos 16 mini-Cracolândias.
Na época, a Prefeitura de São Paulo justificou que seria mais fácil identificar os usuários para acolhimento e tratamento. Comerciantes e moradores da região discordam dessa resolução em razão do aumento da insegurança, do barulho, do acúmulo de lixo e dos conflitos.
Para os pesquisadores do Labcidade, esse cenário dificulta a contabilização exata do número de pessoas em situação de rua, impedindo a realização de políticas públicas, principalmente de saúde, adequadas. Segundo a última estimativa, de 1.000 a 2.000 usuários circulam diariamente pelos bairros.
“A dispersão também rompeu os vínculos dos usuários e desagregou a comunidade. Eles ficam juntos porque se cuidam. O mínimo que eles tinham era uns aos outros”, aponta Roberta Costa, antropóloga e integrante da Craco Resiste, movimento social contra a violência policial na Cracolândia.
Além da separação, essa população vulnerável sofre, segundo a antropóloga, com a violência institucional. As intimidações por parte dos policiais e guardas com uso de cassetetes, spray de pimenta e bombas de gás tornaram-se rotineiras, afetando também a vida dos moradores e comerciantes.
“As pessoas costumam dizer que os usuários são nervosos e muito agressivos, mas eles estão apanhando todos os dias. Não tem como eles não explodirem também, eles são humanos", segundo Roberta Costa, que estuda há dez anos o movimento da Cracolândia.
Falta de estrutura
Além da terceirização do problema da Cracolândia para a Polícia Civil, o promotor Arthur Pinto Filho afirmou ao R7 que não existe uma estrutura física e humana de saúde e assistência social que consiga atender todos os usuários de drogas de forma adequada.
Atualmente, por exemplo, cerca de 40 orientadores sociais — responsáveis por garantir os direitos de pessoas em situação de risco ou vulnerabilidade — atuam na Cracolândia. Como a remuneração é baixa, a rotatividade dessas vagas é grande, impedindo a criação de vínculos e de confiança com os usuários.
Outra problemática elencada pelo MP-SP (Ministério Público de São Paulo) é a condução coercitiva e desumana dos usuários aos hospitais psiquiátricos e centros de acolhimento. “Muitas pessoas eram levadas algemadas”, revelou o promotor. Após o breve período de internação, os pacientes também saem sem perspectiva de moradia e trabalho; por isso acabam retornando à Cracolândia.
Um instrumento controverso que também vai e volta no decorrer das gestões municipais é a internação involuntária de usuários de drogas, que voltou a ser usada na gestão do prefeito Ricardo Nunes. O MP-SP, inclusive, abriu um inquérito civil para apurar a ilegalidade das ações.
Em agosto de 2019, o presidente Jair Bolsonaro sancionou um projeto de lei que alterou a Lei Antidrogas. Segundo a legislação, a internação ocorre sem o consentimento do paciente e com autorização de um familiar ou responsável. O pedido tem que ser feito por escrito e aceito pelo médico psiquiatra, que deve informar o MP no prazo de 72 horas.
Futuro
Questionado sobre as perspectivas para o futuro, o pesquisador Aluízio Marino afirmou que “a análise dos últimos anos não permite ser otimista. Com a pandemia, estamos vivendo uma crise habitacional. Então é difícil pensar em um horizonte positivo. O caminho é a participação popular com as pessoas em situação de rua, moradores da região, comerciantes”.
Para a antropóloga Roberta Costa, a Cracolândia só vai desaparecer quando as questões de moradia, cárcere privado, legalização das drogas, saúde mental e espaços de convívio públicos de lazer forem solucionadas.
Como primeiro passo, o promotor de Justiça dos Direitos Humanos defende a criação de um grupo de trabalho com psiquiatras, o Conselho Regional de Medicina e Psicologia e as lideranças dos usuários, além da contratação de assistência social durante 24 horas.
Outro lado
Em entrevista à Record TV, na quinta-feira (22), o delegado Roberto Monteiro, líder da Operação Caronte, afirmou que a situação mudou completamente na Cracolândia em relação ao ano passado. As incursões no fluxo são realizadas a partir de um trabalho de inteligência e investigação com policiais infiltrados, fazendo imagens de pequenos traficantes em ação.
“Antes tínhamos um gueto na praça Júlio Prestes com várias ruas repletas de barracas, onde havia de 10 a 15 banquinhas com importantes traficantes atuando. Hoje temos só microtraficantes que são presos constantemente”, disse o delegado.
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Monteiro também contou que, atualmente, o crack é vendido em pouca quantidade e em valor alto. “A pedra está de 25 a 40 reais, porque falta droga nessas ruas.”
Enquanto isso, a Prefeitura de São Paulo informou que “oferta por meio de sua rede de equipamentos e serviços o acolhimento e o tratamento a usuários de álcool e outras drogas em situação de vulnerabilidade ou risco social”.
Por meio de nota, a prefeitura também divulgou que, entre janeiro e novembro, 333 pessoas foram encaminhadas para leitos hospitalares, e apenas três foram de modo involuntário ao Hospital Municipal Cantareira. O tempo médio de permanência para desintoxicação nas internações é de dez dias.
Nesse período, foram realizadas 40.971 abordagens, que incluem atendimentos médicos e de enfermagem e encaminhamentos para a rede de saúde, além de 1.534 encaminhamentos para o Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica.