Reservas indígenas do Mato Grosso do Sul estão entre as regiões mais violentas do mundo
Taxas de homicídios em áreas do Estado são comparáveis às de Caracas e San Pedro Sula
Brasil|Diego Junqueira, do R7
Espancamento. Agressão a pauladas. Facadas. Armas de fogo. Golpe de foice. Brigas de bar. Briga de vizinhos. Brigas de família. Crimes passionais. Crimes políticos. Feminicídio. Suicídios. Conflitos por terra. Perseguição de pistoleiros. Tocaias.
Esses foram alguns dos crimes que aconteceram em 2015 nas reservas indígenas do Mato Grosso do Sul, principalmente no sul do Estado. Com taxas de homicídio que superam as estatísticas de qualquer município brasileiro, esses territórios estão entre as regiões mais violentas do mundo.
Segundo o governo estadual, álcool, drogas e confusões em festas respondem por mais da metade dos assassinatos de índios. A gestão também responsabiliza a Funai (Fundação Nacional do Índio) e diz ficar “de mãos amarradas” porque os territórios pertencem à União. Para o MPF (Ministério Público Federal), no entanto, a administração estadual é omissa ao abandonar as comunidades, não oferecer serviços públicos básicos e não garantir a segurança dessas populações.
Dados obtidos pelo R7 junto ao DSEI- MS (Distrito Sanitário Especial Indígena do Mato Grosso do Sul), órgão vinculado à Secretaria Especial de Saúde Indígena, do Ministério da Saúde, revelam que, nas reservas do entorno do município de Antônio João, a taxa de homicídios em 2015 foi de 95,78 assassinatos por 100 mil habitantes. Na região de Dourados, de 92,19, e, em Amambai, 77,2.
Essas taxas são de três a cinco vezes maiores do que os índices registrados para a população geral desses municípios: 22,8 em Antônio João, 28,3 em Dourados e 26,3 em Amambai — os índices nas cidades foram calculados a partir dos homicídios dolosos contabilizados pela Sejusp/MS (Secretaria Estadual de Justiça e Segurança Pública) e da estimativa populacional do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
A taxa no Brasil é de 29,1, segundo o Atlas da Violência 2016, e o índice da região brasileira mais violenta, São Luís (MA) e entorno, é 84,9.
Se fossem municípios, as áreas indígenas de Antônio João e Dourados estariam no topo do ranking global de assassinatos, atrás somente de Caracas (Venezuela, 119,8), San Pedro Sula (Honduras, 111), San Salvador (El Salvador, 108,5) e Acapulco (México, 104,7), segundo números da ONG mexicana Conselho Cidadão para Segurança Pública e Justiça Penal, que publica anualmente relatório com taxas de homicídio das cidades mais violentas do mundo.
O DSEI-MS, responsável pelo atendimento básico em saúde aos índios, monitora os homicídios dolosos desde 2001. O levantamento do órgão mostra um agravamento da violência a partir de 2007. Entre 2001 e 2006 foram registrados 123 homicídios (média de 20,5 por ano). Já entre 2007 e 2015 ocorreram 356 assassinatos, com média anual de 39,5.
No ano passado, foram 36 homicídios em uma população de 73.181 indígenas. Foi o menor valor desde 2009, quando ocorreram 23 assassinatos.
O DSEI-MS calcula as taxas de homicídio considerando as aldeias que formam seus polos base de atuação (14 no total). Assim, para as reservas de Antônio João, são considerados a população e os homicídios dolosos registrados nas seguintes aldeias: Campestre e Cerro Marangatu (em Antônio João), Pirakuá (em Bela Vista) e Kokue-Y e Lima Campo (em Ponta Porã) — veja aqui quais aldeias e acampamentos formam os 14 polos base de atuação do DSEI-MS e a população em cada uma delas.
Qual a razão para tantos crimes?
Para o governo estadual, a principal explicação é a violência entre os próprios índios.
Em nota enviada ao R7, a administração informa que, entre 2007 e 2015, “foram registrados 270 boletins de ocorrência tendo indígenas como vítimas de homicídio doloso” — 86 casos a menos que o registrado pelo DSEI-MS.
Segundo o governo, “o consumo de álcool e drogas foram os fatores propulsores de 95 ocorrências, enquanto o desentendimento em festas foi o motivo apurado em 49 assassinatos”, totalizando 144 casos, ou 53,33% dos crimes no período.
“Considerando-se por autoria, foram apontados 281 autores (mais de um autor por homicídio), sendo que desses, 269 são indígenas e 12 não indígenas”, continua a nota.
Para o procurador da República Marco Antonio Delfino de Almeida, que atua no MPF em Dourados, colocar a responsabilidade sobre os indígenas é uma visão “extremamente simplista”.
Segundo Delfino, a principal explicação é o “confinamento” dos índios em territórios pequenos e insuficientes para uma vida digna, o que afeta principalmente os guaranis-kaiowás, etnia predominante no sul do Estado.
A demarcação dos territórios indígenas no Mato Grosso do Sul se iniciou em 1915. Até 1928, o antigo SPI (Serviço de Proteção aos Índios) delimitou oito áreas a serem homologadas como reservas. Na prática, os índios foram expulsos de suas terras e deslocados para essas regiões.
"A rigor, essas reservas são campos de deslocados internos, equivalentes a campos de refugiados", afirma o procurador.
— Os guaranis-kaiowás são pessoas que foram retiradas de seus territórios tradicionais e despejadas dentro desses campos de deslocados internos. Se você fizer uma comparação, eles têm os mesmos problemas dos campos de refugiados, como agressões contra mulher, estupro, violência, assassinato, desorganização social, carência de serviços públicos. O grande problema é que essas reservas têm cem anos, como a de Dourados. Então é uma omissão do Estado brasileiro de cem anos, que simplesmente abandonou [os territórios] e faz apenas intervenções pontuais.
Nas aldeias da região de Dourados, a densidade demográfica indígena é de 86,7 habitantes/km², ante 52,7 no município e 7,49 no Estado. Em Amambai, a densidade nas reservas chega a 207,7 índios por km². Já nas reservas do entorno de Antônio João, que registraram a maior taxa de homicídios em 2015, é de 10 habitantes/km². Os índices foram calculados a partir de dados do DSEI-MS e da Funai, mas não retratam completamente a realidade, já que alguns dos territórios demarcados não estão completamente ocupados por índios e se encontram em disputa judicial — ou seja, a densidade populacional é maior do que os números mostram.
Com índios confinados em terras superpopulosas, os conflitos internos acabam se agravando, explica Cleber Buzatto, secretário-executivo do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), órgão vinculado à igreja católica que acompanha a situação dos povos indígenas no Brasil desde 1972.
— Houve um adensamento patrocinado e implementado pelo Estado brasileiro, onde os guaranis-kaiowás foram retirados de seus ‘tekohas’ (lares ancestrais sagrados) e jogados nessas reservas, nas quais vivem uma situação totalmente diversa daquela que é preconizada pela Constituição brasileira, ou seja, com condições territoriais para que possam viver de acordo com seu estilo de vida e tradições.
Devido ao “confinamento”, diz Buzatto, os “conflitos internos são potencializados”, levando ao consumo de bebidas alcoólicas e drogas, ao agravamento da violência e até suicídios.
— As mortes decorrentes dos conflitos internos não são de forma alguma desvinculadas do contexto [de disputa] territorial.
Retomada
Diante desse cenário, os próprios indígenas deram início, na década de 1980, a um processo conhecido como “retomada”, em que buscam reocupar seus antigos territórios ou áreas já delimitadas pela Funai, mas ainda não homologadas pela Presidência da República.
Com o processo de retomada — classificado como “invasões” pelo governo do Estado e pela Famasul (Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul, que representa os grandes produtores rurais) —, intensificou-se a violência contra os índios, sobretudo contra lideranças indígenas.
As comunidades acusam grupos de pistoleiros, contratados por fazendeiros, de promoverem tocaias e ataques. Em agosto passado, a Polícia Federal prendeu 18 fazendeiros, a pedido do MPF, suspeitos de envolvimento em ataques em Caarapó. Procurada pela reportagem, a Famasul preferiu não se pronunciar.
Em algumas retomadas, os indígenas conseguem garantir atendimento à saúde, fecham parcerias com prefeituras para o transporte escolar de crianças, constroem poços d'água, distribuem cestas básicas, entre outras questões.
Mas em outros casos, quando são expulsos das retomadas, grandes grupos familiares passam a viver em acampamentos, muitas vezes na beira de estradas. Isso dificulta, por exemplo, o trabalho de assistência básica de saúde, já que algumas ações do DSEI-MS, como obras de construção, só podem ser implementadas em territórios regularizados.
Fábio Turibo, de 20 anos, faz parte do movimento da juventude dos guaranis-kaiowás, o RAJ (Retomada da Aty Jovem). O grupo viaja por aldeias e retomadas do Estado para explicar a jovens e adolescentes sobre os processos de demarcação de terras, leis que tramitam no Congresso e outras informações que impactam na vida dos indígenas.
Ele afirma que as retomadas são “mais organizadas” do que as aldeias e que seus moradores, sobretudo crianças e adolescentes, mantêm nesses locais a cultura e a tradição dos povos indígenas, de reconhecimento do passado e de contato com a natureza, algo que “vai se perdendo dentro das aldeias”.
— As oito aldeias não foram [escolhidas] em lugares específicos. Foi uma área que o próprio governo demarcou. Hoje são lugares muito populosos. As pessoas foram confinadas.
Segundo o pesquisador Marcelo Zelic, vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo e que foi membro do Grupo de Trabalho Indígena durante a Comissão Nacional da Verdade, o Mato Grosso do Sul vive uma situação de "genocídio", não somente pelo número de mortes, mas “pelo assassinato de uma cultura”.
— A pessoas têm que tomar consciência do nosso processo de desumanização, porque, ao tratar um outro ser humano assim, desumanos somos nós. Criou-se uma espécie de visão natural, como se os índios sempre vivessem assim, de forma precária, e não é verdade. A criança indígena ama, chora, briga como qualquer outra.
Ele conta que a população guarani, no passado, era capaz de resolver seus conflitos internos. Quando problemas aconteciam dentro das aldeias, grupos familiares se deslocavam para evitar novos enfrentamentos, comportamento que atualmente não é mais possível.
— Você não pode se deslocar para se afastar de um conflito, por exemplo. O guarani era um povo que se mexia dentro do seu território, mas agora ele tem que ficar entalado ali até morrer.
Responsabilidade de quem?
O governo do Mato Grosso do Sul admite, segundo o R7 apurou, que as reservas ficam “abandonadas” e em um "limbo" pelo fato de os territórios pertencerem à União. Para a gestão, existe uma "omissão muito grande" por parte da Funai.
Já a Funai diz que a violência “têm causas múltiplas e demandam exame detido e acurado”. O órgão federal diz trabalhar “intensamente e com o máximo apuro técnico nos processos que tenham por objeto a demarcação de terras indígenas. Os processos de trabalho podem, no entanto, ser continuamente melhorados e a Funai se empenha para isso”.
Para o procurador Marco Antônio de Almeida, as diferentes taxas de homicídios entre reservas e municípios indicam “uma omissão do poder público estadual”, que “mantém uma negligência quase que criminosa no policiamento preventivo dessas comunidades”.
— Qualquer governo que visse esses dados efetuaria intervenções. Em qualquer local do mundo isso demandaria uma intervenção estatal organizada. E aqui [no Mato Grosso do Sul] esse é um dado exposto há dez anos, pelo menos, mas nenhuma ação relevante é efetivada.
As investigações sobre a morte do índio terena Oziel Gabriel, assassinado por um disparo de arma de fogo durante operação de reintegração de posse na cidade de Sidrolândia, é um exemplo do jogo de empurra entre governo federal e estadual, do descaso das autoridades policiais, além de símbolo da impunidade.
Em 30 de maio de 2013, um efetivo de 70 policiais federais e 82 policiais militares, comandados pela Superintendência da PF no Mato Grosso do Sul, cumpriram ordem judicial de reintegração de posse na fazenda Buriti, então ocupada pelos terenas.
Morto com um tiro no abdômen, a camiseta que Oziel utilizava durante o conflito desapareceu. Além disso, perícia realizada pelo Instituto Nacional de Criminalística, vinculado à PF, identificou uma perfuração de arma de fogo em sua jaqueta, mas não encontrou o projétil dentro do corpo. O MPF e o advogado da família suspeitam que a bala e a camiseta tenham sido ocultadas no Hospital de Sidrolândia, para onde Oziel foi levado após receber o disparo.
O MPF classificou na semana passada a operação como “fracassada” e com “graves erros”, ao excluir o próprio MPF e a Funai do planejamento da operação. A procuradora da República Analicia Ortega Hartz, à frente do caso, concluiu ainda que o disparo foi realizado pela Polícia Federal — a perícia indica que Oziel “foi atingido provavelmente” por munição 9mm do tipo Gold, produzido pela CBC (Companhia Brasileira de Cartuchos), de uso exclusivo da PF. A PF nega.
Em ação indenizatória que corre na 1ª Vara Federal de Campo Grande, o advogado da família de Oziel, o também terena Luiz Henrique Eloy, vai incluir a decisão do MPF e cobrar a responsabilidade da União. Por meio da AGU (Advocacia Geral da União), o governo federal vem argumentando que a responsabilidade é da Polícia Militar do Estado do Mato Grosso do Sul.
Embora três agentes federais tenham admitido ao MPF que realizaram disparos durante a ação, mas para o chão, a procuradora Analicia pediu o arquivamento do processo para determinar a autoria do disparo porque “todos informaram que efetuaram disparos com intuito exclusivamente intimidatório e em direção ao solo. [Mas] não foi possível identificar quem errou a mira”.
O assassino de Oziel dificilmente será identificado.